UMA CAMA PARA ULISSES

por Marcus Fabiano

SOBRE UMA INSTALAÇÃO DE ISABELA SÁ RORIZ

TÃO - ISABELA SÁ RORIZ

Certas apresentações de mostras artísticas, como aquelas com looooooongos textos plotados em paredes de museus e galerias,  às vezes tornam-se cômicas no exercício de retóricas pedantes e pretensiosas que lamentavelmente têm frequentado espaços expositivos tanto no Brasil como mundo afora. É o que se chama de tendência: algo de origem remota e que se vai impondo de modo acrítico e silenciosamente epidêmico. Modeladas no corta-estica de Procusto, e inflacionadas por um léxico supostamente erudito, tais escrituras tentam desesperadamente fazer caber em palavrórios grandíloquos a singeleza (quando já não a miséria) dos trabalhos aos quais se reportam. Com a instalação de Isabela Sá Roriz aqui apreciada, passa-se justamente o contrário: a artista atingiu uma realização raramente atingida em grau tão genuíno e intenso entre jovens artistas, algo que certamente mereceria uma análise mais densa em um ensaio de fôlego filosófico. Porém, na impossibilidade de agora escrevê-lo detidamente, quero ao menos suscitar alguns caminhos interpretativos a respeito dessa obra que esteve exposta entre setembro e outubro de 2011 no Teatro Sérgio Porto, no Rio de Janeiro.

Com apenas três materiais (o látex, o vidro e a madeira) Isabela penetrou no recinto homérico da Odisseia e de lá trouxe algo de sua extraordinária força arquetípica exercida sobre todo o imaginário do Ocidente.  Pretendo assim retomar os instantes decisivos capazes de dar suporte a tal afirmação. Ulisses (ou Odisseu) retornava a Ítaca após uma longa ausência, penando pelos mares após a Guerra de Tróia, amaldiçoado que fora por Posseidon em razão de sua soberbia. Quando finalmente consegue chegar à pátria, encontra sua Penélope assediada e pressionada a escolher um novo ocupante para o trono. Já revelado o célebre ardil protelatório da tecelagem desfeita durante a noite, o Canto XXII da Odisseia versa a respeito da prova física que Penélope impusera para a escolha de seu novo cônjuge: o disparo certeiro de uma seta com o arco de Ulisses por entre anéis fixados nos cabos de doze machados dispostos em uma mesma linha. A prova supunha-se de altíssima destreza, o momento, de violenta tensão psicológica, posto que nenhum dos pretendentes sequer lograva vergar o arco do antigo rei para encordoá-lo. Eis quando Ulisses, disfarçado de humilde camponês (ou mendigo, segundo alguns) pede para também tentar. Ridicularizado de pronto pelos nobres circundantes, aquele homem andrajoso não apenas verga o arco como também, se súbito,  elimina a todos cortejadores de Penélope com disparos de flechas letais. Após esse episódio sangrento, conhecido como o massacre dos pretendentes, Penélope é alertada por uma escrava de que seu marido havia enfim retornado a Ítaca. Incrédula, ela chega a exasperar-se com sua serva, mas termina por ir ao encontro daquele que acreditava ser mero impostor. Em uma atmosfera de suspense, Penélope adota de pronto um tom rude com aquele que acreditava apenas alegar ser Ulisses. Mas, mesmo assim, decide testá-lo: ordenou que um leito fosse tirado do seu quarto e preparado no exterior para descanso daquele forasteiro exausto. Ulisses então encoleriza-se e lhe replica, dizendo que só com a ajuda de um deus poderia algum mortal mover do lugar a sua cama, passando logo descrevê-la minuciosamente para Penélope: construída por suas próprias mãos a partir do tronco de uma velha oliveira, larga como uma coluna, e que ainda encontrava-se enraizada no terreno ao redor do qual ele ergueu as grossas paredes do aposento nupcial de seu palácio.  E ele ainda aduz que fabricou aquela cama para ambos, aplainando a árvore com instrumentos de marcenaria e adornando-a finamente com peles, ouro, prata e marfim. Nesse instante, reconhecendo na perfeita descrição da cama de ambos um sinal definitivo, Penélope desata em copioso pranto, entregando-se em abraços e beijos ao seu Ulisses enfim reconhecido.

O peculiar sentido atribuído a esse leito mítico acaba por alçá-lo à condição paradoxal de um móvel inamovível, um objeto que, ao vencer o limiar da impermanência, transita à condição de símbolo da mútua devoção entre Penélope e Ulisses, locus telúrico e humano de uma genealogia nobre e perene, capaz de unir a terra à descendência, a raiz do lenho encravado à carne do filho de ambos ali presente, o jovem Telêmaco. Toda essa potente ordem de questões e significados articulou-se de modo pujante na instalação de Isabela Sá Roriz. Ao mudar o ambiente expositivo em uma câmara (aposento) de imersão multissensorial, a artista cuidou de diversos elementos presentes nas passagens homéricas acima mal relembradas em comprimida síntese. E o mais surpreendente: nada foi propositalmente pensado a partir de Homero no desenvolvimento da instalação, pois disso me certifiquei indagando à própria autora sobre suas fontes, pesquisas, influências ou inspirações.  Como artista visual, Isabela  simplesmente elegeu a cama conjugal como símbolo e supersigno por excelência, recolhendo daí toda a abundância alusiva que acima vinculei ao episódio homérico.

Assim, graças a um inusitado cruzamento entre materiais plásticos e afetivos, a obra foi pensada como um trilho de 20 metros de látex natural que se derrama de uma cama de casal (construída em madeira, mas posicionada de prumo) até algumas setas de cristal que ao fundo surgem luminosas apontadas para parede oposta ao “quarto”, ameaçando o próprio leito. O látex da borracha natural é substância de curiosas propriedades: transforma-se de mero fluido informe em corpo sólido e macio mediante a ação coagulante do tempo. E creio que ao menos três domínios simbólicos convirjam para o êxito da obra nessa escolha do látex: a seiva, o sangue e o sêmen. Juntos eles se prestam a invocar a longa pele contínua das gerações que se sucedem, derramando-se elástica como uma superfície táctil e olorosa, como um invólucro epidérmico mantendo em frágil e tensa ereção a própria cama de onde se origina, cujo espaldar toca o chão justamente como a guarda da cama de Ulisses.

A disposição entre os volumes da obra explora um eloquente discurso plástico sobre o leito não apenas como lugar de prazer e aconchego, mas também de geração e perpetuação de um sangue misturado a outros, algo que frutificou apesar das vicissitudes afetivas da vida de casal ali também sutilmente problematizadas: os conflitos e as incertezas da duração, as separações mais ou menos traumáticas, as possibilidades dos novos encontros. Além disso, a abordagem da cama apresentada por Isabela Roriz pareceu-me tão pujante em sua expressão clara e intensa que penso merecer o cotejamento com outro móvel carregadíssimo de significações para a economia da sensibilidade humana: a mesa (e para os interessados nas possibilidades de uma exploração fenomenológica das artes plásticas, não posso deixar de recomendar os belíssimos poemas À Mesa, de Drummond e La Table, de Francis Ponge). Cama e mesa: maneiras humanas de se recriar o chão (e por vezes o teto) para uma melhor sustentação de corpos e coisas que nos cercam e nos servem em um espaço doméstico protegido contra as indiscrições e as hostilidades do abandono e do desabrigo.

Com efeito, a cama da obra de Isabela é também impossível: está praticamente na vertical, com sua cabeceira apoiada no chão, tendo sido reconstruída em uma inclinação proposital de 45 graus. A sensação de um equilíbrio precário assim alcançada sugere que estaria prestes a cair, não fosse a pele de látex que a mantém tensionada e estável no seu lugar. Despojada de colchão, e mesmo de lastro, em posição ergonomicamente imprestável para qualquer uso, essa cama foi revirada em seu sentido utilitário. Restou-lhe apenas o peso da carga conotativa da sua representação, marcada pela contumácia natural daqueles objetos mundanos que desde há muito estão aí ao nosso dispor. E digo “desde há muito”, embora não desde sempre: o homem constrói camas há aproximadamente 10.000 anos. A cama é o lugar do sono e do sonho, do gozo e da angústia, o artefato sobre o qual se nasce e onde também se expira: tálamo da parteira e leito de morte. A cama é ainda o altar do sexo e do aconchego, por isso na casa seu ambiente é por excelência o quarto, recinto que inspira um duplo respeito, à intimidade e ao repouso.

Entre muitas outras camas matriciais, talvez inclusive a sua própria, essa instalação de Isabela Roriz trouxe do quarto para a sala de exposições algo que Penélope partilhava com Ulisses. A artista atingiu assim aquele raríssimo veio mítico da experiência estética, responsável por fazer a verdade das coisas atravessar milênios e permanecer pregnante mesmo para os imaginários mais contemporâneos, intoxicados pela superposição de referências. A obra tocou um crucial âmbito de universalidade, ao discorrer a respeito dos aspectos mais transcendentes da constituição da vida humana e de sua perpetuação: o amor e a fidelidade, a volúpia e a prole, a pele e o tempo, a perene fragilidade das relações que ao se reproduzirem no corpo contínuo dos filhos, permanece abençoada, ou ameaçada, por nove setas de cristal como os meses da gestação. E isso desde muito antes de Homero.

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TÃO - ISABELA SÁ RORIZ

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TÃO - ISABELA SÁ RORIZ

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Fotografias de Pedro Victor Brandão