ARAME FALADO

MARCUS FABIANO GONÇALVES

Mês: junho, 2013

SOBRE A REVOLTA DO VINAGRE

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SEM VANDRÉ NEM LINDBERG: O MOVIMENTO É SEXY
(POVO, PARTIDOS, VÂNDALOS E FASCISMO)

Agora não adianta nenhum pomadista querer chorar as pitangas do banimento dos partidos políticos da chamada Revolta dos Centavos ou do Vinagre. Claro que o ocorrido foi um fato lamentável, mas fez parte de um BASTA às mentiras do discurso oficialesco e do servilismo governista. Esse que se vê aí é um Movimento de DEMOCRACIA DIRETA, ao qual a representação partidária só compareceu residual e adesivamente. E dado o seu caráter massivo, o acirramento de ânimos algumas vezes tomou o lugar do diálogo, o que não é de modo algum defensável, embora compreensível. Porém não é verdade que nesse Movimento não haja representações de outros tipos. Nele ao menos duas representações autênticas e legítimas operaram-se naturalmente: os estudantes representando os trabalhadores e as metrópoles representando as periferias.

Um longo cansaço acumulado com os muitos descasos regurgitou a sua azeda insatisfação sobre um sistema de representação institucional que apodreceu graças às alianças espúrias que transformam os interesses dos representados na ganância corporativa dos representantes, essa casta sem direita nem esquerda que se incrustou nas burocracias legislativas e executivas e que se habituou a oferecer mais explicações do que resultados, promovendo concessões e evitando autênticas rupturas, vivendo da permanente ocultação do seu fisiologismo em slogans publicitários. E por falar em publicidade, vou direto ao assunto: querem uma fonte orçamentária para financiar a REDUÇÃO DA TARIFA ou o tal PASSE LIVRE? Pois então que os Governos tirem esse dinheiro da PUBLICIDADE INSTITUCIONAL. Os anúncios bilionários dos Governos nas TVs, nos jornais, nas revistas e nas rádios têm um propósito muito superior à propaganda: eles buscam comprar o silêncio das oposições na imprensa, impedindo o jornalismo mais independente, tornando-se a fonte de renda lícita de uma imoralidade escandalosa e absurda. Ademais, com o fim da publicidade institucional, também seriam amputadas as máfias das AGÊNCIAS DE PUBLICIDADE que recentemente vimos expor toda a sua podridão no julgamento do Mensalão, uma vez que os publicitários que cuidam das campanhas são os mesmo que depois vencerão “editais” e “concorrências” para produzirem os anúncios dos sufragados que se tornam governos.

Apenas os mais incautos não enxergam nesse Movimento um repúdio violento à inércia corrupta de uma representação que só seria purgada de seus males caso fosse vigiada de perto por uma opinião pública formada e esclarecida pelas escolas que não vieram e sequer melhoraram. Loteado pelos setores corporativos do capital, o sistema representativo esclerosou-se e já passa a ser devorado pelo fundamentalismo religioso. Opor esse diagnóstico à suposta vagueza da pauta do Movimento é não compreender a parcela de responsabilidade que cabe à própria política na produção de uma insatisfação incapaz de se elaborar perfeitamente. Todavia, assombrada com os milhões de pessoas na rua, a própria Presidente da República acabou por dar uma redação final a essa pauta em seu pronunciamento tíbio, tardio e dissimulador. Foi ela quem RECONHECEU publicamente como pauta do Movimento: a corrupção, a educação, a saúde, a transparência, a infraestrutura e a mobilidade urbana.

Logo, não é verdade que o repúdio aos partidos provenha principalmente de uma direita fascista infiltrada nas manifestações. Antes de alimentar esse inimigo imaginário, a esquerda toda há de rever os seus modelos ortodoxos de partido (o de Lênin, a vanguarda bolchevique, e o de Gramsci, a hegemonia do Bloco Histórico) sem temer o desconhecido desse novíssimo espaço público que mescla o real ao virtual e que desmascara o comércio vil das utopias ao preferir a guerrilha da informação instantânea, um modo inédito de se fazer política que felizmente começa a abandonar a lenga-lenga do sonho para suportar o altíssimo custo cognitivo de se permanecer desperto e vigilante, sem o MEDO tolo dos fantasmas fabricados e sem a ESPERANÇA pueril nos salvadores carismáticos que ousam se pretender acima da Constituição. Reparem bem: MEDO e ESPERANÇA, duas palavras oriundas do discurso teológico, a primeira prestando-se a manipular espectros tão distintos como o temor ao golpe de Estado ou ao socialismo, a segunda administrando a recomendação de uma paciência dócil e bovina.

Os Poderes da República só continuam de fato independentes porque o Judiciário (essa outra “caixa preta”), desde há pouco vem mostrando, com louvável clareza, que certas relações corruptas entre o Executivo e o Legislativo tiveram uma natureza criminosa. Olhando só as instituições, é esse o desolador quadro clínico da nossa democracia vegetativa. Mas quando a sociedade é inserida nas análises, surgem alguns indícios de uma outra inclinação fascista no exercício do poder. Vemos os slogans populistas brandidos por publicitários (peritos em propagandas de detergente) com o intuito de dissimular uma aliança sólida e promíscua entre o capital privado e o poder público. Essa é, pois, a cara maquiada da nova direita à qual a velha esquerda agora se submete: a direita dos interesses financeiros sempre atendidos como prioritários e em detrimento das demandas sociais acalmadas com medidas paliativas e magnânimas. Tal mistura despolitizante entre a política de mídia e a subserviência ao privatismo conduz a uma democracia analfabeta e meramente nominal, uma continuação do multissecular parasitismo de nossas elites econômicas que agora se travestem de responsabilidade social e ambiental, de marketing cultural e desportivo. O seu subproduto mais abundante é a instauração de uma ética do favor capaz de transformar direitos incompreendidos como tais em prestações dadivosas às quais se deve uma eterna gratidão na forma de voto: é a troca injusta da beneficência pelo reconhecimento da benemerência. Certa vez um sapateiro resumiu para mim a sua motivação para votar em Lula: “porque ele é uma mistura de Odorico Paraguaçu com Sassá Mutema”, disse-me aquele Bandarra. Claro que as coisas não são bem assim. Mas é evidente que também assim o são, ao menos em parte. A eclosão súbita dessas últimas manifestações massivas trouxe uma inédita desidentificação simbólica entre Lula e o povo, aí incluídas as camadas médias intelectualizadas que enxergavam em seu principal líder de esquerda a oportunidade de uma aliança histórica com os pobres em vista de uma justiça social a ser erigida de modo perene e estrutural. E se Lula perde o monopólio dessa representação empática e espontânea do mesmo povo do qual ele se origina, há quem pense que este último só possa estar politicamente “perdido” ou insuflado por algum surto “fascista”.

Carente de planejamento e infraestrutura, e alijada dos setores estratégicos e de ponta, como a tecnologia e a ciência, a economia brasileira segue resignada o caminho da sua história colonial: ciclo do ouro, ciclo do açúcar, ciclo do café, ciclo da borracha e agora os ciclos da soja e do ferro. Não vou então me deter na denúncia das privatizações camufladas que ocorrem nas incontáveis negociatas dos megaeventos – Copas e Olimpíadas. Prefiro chamar a atenção aqui para algo bem mais antigo: a complacência com a falta de uma reforma agrária que hoje transforma a desigualdade histórica do latifúndio em um tema étnico relacionado aos indígenas e aos quilombolas. Nada mais ardiloso: sem uma solução distributiva, a questão da terra passa a ser um assunto de minorias culturais. Ora, essa é uma máquina lucrativa, voltada a fabricar instabilidades e salvadores, uma máquina que não quer resolver problemas estruturais, mas sim convertê-los em idiossincrasias que enriqueçam os atravessadores do jogo político sempre dispostos a responsabilizar um sistema abstrato e convenientemente apresentado como sem partido nem maiorias parlamentares, tal qual essa de que efetivamente dispõe o Governo Federal no Congresso Nacional. É nesse panorama atroz que se desenvolve uma cidadania muito mais voltada ao consumo do que à educação, uma cidadania orientada a valorizar o cartão de crédito (ou de programas sociais) e a desprezar o título eleitoral e a escola. Por isso não é de se estranhar que os partidos tenham sido enxotados em bloco das manifestações, provando a letalidade do próprio veneno imbecilizante que lentamente inocularam no tecido de um corpo social já raquítico – o mesmo que é periodicamente abusado e depois abandonado em sessões de sadismo eleitoral.

Imediatamente identificados com os Governos, os partidos fracassaram ao buscarem tutelar um Movimento suprapartidário de indignados. E, ao contrário do que se alegue e apesar de alguns focos conservadores, tratou-se sim de um Movimento majoritariamente progressista, um Movimento diretamente inspirado em outros episódios internacionais ligados ao MANIFESTO DOS INDIGNADOS proposto por Stéphane Hessel, membro da resistência à ocupação nazista, sobrevivente do campo de concentração de Buchenwald, defensor da causa palestina e dos imigrantes sem documentos, um dos redatores da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Alguém ousará insinuar que um homem desses, que incitou agitações pelo mundo inteiro com só com a força de seu exemplo e de seus escritos, é um fascista? Francamente!

Entretanto, a indignação na Revolta dos Centavos ou do Vinagre teve aqui a nossa cara, impregnando-se da espontaneidade de duas das manifestações populares mais pujantes do Brasil e mesmo do mundo: a torcida de futebol e o bloco de carnaval. Além dessas, uma terceira forma de manifestação, essa bem mais recente, também compareceu às ruas: a parada gay, reforçando assim o caráter antifundamentalista dos clamores que incorporaram o repúdio às sandices de Marcos Feliciano. Entretanto, a obtusidade de certa militância tradicional não teve alcance interpretativo para compreender que um tal Movimento jamais se converteria em uma passeata que culminasse em um comício. Tampouco os partidos pequenos compreenderam a tempo que as manifestações não conseguiriam discernir as suas agremiações minúsculas e que, ao mirar o sistema representativo como um todo, eles também seriam atingidos. Alguns desses pequenos partidos de esquerda, que jamais tiveram experiências viciosas com o poder, foram violentamente repelidos pela multidão. Reitero: o ocorrido foi doloroso e condenável. Além de fisicamente machucados, alguns militantes históricos ficaram profundamente magoados ao experimentarem subjetivamente aquele rechaço como uma espécie de ingratidão aos seus serviços prestados à democracia. Mas há para isso uma explicação: esses partidos foram confundidos com o desempenho governista do PT, alvo maior e prioritário do descontentamento generalizado. De mais a mais, tornou-se há muito insofismável o peleguismo que aparelhou diversos órgãos de classe e movimentos sociais organizados, muitos já habituados a viver de mamatas editalícias e outras verbas públicas. Isso sem se falar do governismo que domina a CUT, essa pá de cal jogada sobre o cadáver do nosso sindicalismo. E é absolutamente escandaloso que, na última hora, já quando o Prefeito Haddad mudava o seu discurso em relação ao aumento das passagens, que o PT tenha convocado, junto com os seus militantes, as entidades de trabalhadores, de agricultores sem-terra e de estudantes, como se tais organizações independentes fossem uma brigada emergencial a ser mobilizada em momentos de abalo à credibilidade do Governo. Essas conjunturas deverão futuramente integrar uma análise mais acurada do nosso primarismo político. Isso porém não deve jamais ser chamado de FASCISMO nem deve ser incorporado a argumentações que, pretendendo explicitamente salvar a pele dos Governos responsáveis por uma violência policial extrema, acenem com os rumores distrativos de um GOLPE DE ESTADO. Onde já se viu Golpe de Estado com mais de um milhão de pessoas na rua, dentre as quais uma imensa quantidade de homossexuais? Teriam as nossas Forças Armadas se tornado uma Instituição interessada em fazer um golpe com gays e os assim chamados “baderneiros”? Essa tese não merece crítica: ela é simplesmente ridícula e facciosa, industriada por interesses eleitoreiros dos partidos governistas (PT, PMDB, PSDB) que foram em bloco abominados pela sociedade civil desorganizada capaz de se mostrar crítica e contundente em seu inconformismo. Ora, o verdadeiro FASCISMO nasce de uma associação hedionda entre (1) o triunfalismo de um programa, (2) o uso massivo e manipulador dos meios de comunicação e (3) o monopólio do poder militar estatal. Responda à seguinte pergunta e você logo encontrará onde realmente se localiza o germe do fascismo nisso tudo: durante os confrontos, do lado de quem estiveram (1) o lema tautológico do “País Rico & Sem Pobreza”; (2) a Rede Globo, e (3) a obediência dos batalhões de Choque das polícias militares  e das tropas federais da Força Nacional que faziam a segurança da Copa das Confederações? Do lado dos Governos ou do lado do povo? Pois bem.

A tese que propaga o rumor de um suposto golpismo ou fascismo do Movimento provém da mesma fonte que sustenta ter sido o Mensalão um GOLPE DAS ELITES. É a tese purista de uma esquerda que se acredita acima do bem e do mal, uma esquerda que zomba do Direito porque entende que este não passe de um mero jogo político elaborado em uma linguagem mais hermética e técnica, imaginando-se conduzida por uma causa indiscutivelmente superior, à qual os eventuais inimigos devem se curvar. O discurso dessa causa é de fundo propagandístico e alimenta um messianismo disfarçado. Ele é redentor nas suas promessas mas subserviente ao mesmo poderio econômico que outrora prometeu combater na sua prática. É um discurso que agrada banqueiros e latifundiários ao mesmo tempo em que descontenta professores e operários. Mas de repente, não mais que de repente, à margem da esperança da publicidade e das lideranças partidárias tradicionais, surgiram A MASSA ANÔNIMA e os ditos VÂNDALOS – esse gado eleitoral selvagem, sem curral nem boiadeiro. Qualquer exame minimamente responsável desse quadro não pode acatar os rótulos criados pela imprensa para difundir o pânico que tanto interessa aos Governos para o sufocamento da Revolta. Cumpre então perguntar: quem são de fato esses vândalos? Certamente um conjunto muito heterogêneo e mesmo inapreensível de pessoas aborrecidas e furiosas. São vândalos os trabalhadores chicoteados no trem e no metrô para caber em um vagão superlotado. É vândalo o jovem burguês com problemas edipianos que atacava os interesses do seu pai empresário nas portas da Prefeitura de São Paulo. É vândalo o faminto da cracolândia que saqueou a sua próxima pedra de crack. São vândalos os anarquistas e os partidários da tática Black Bloc que formaram uma heroica linha de frente contra a polícia que iniciava agressões indiscriminadas. São vândalos os bandidos dos “bondes” que apavoraram os manifestantes com seus assaltos. É vândalo o jovem do mundo digital que com muita adrenalina experimentou na realidade física as emoções dos personagens de seu videogame. São vândalos os punks que, como se viu, além de lançarem paus e pedras, não hesitaram em formar um cordão de isolamento para evitar que fosse linchada um unidade de PMs sem munição que estilhaçou as vidraças de um banco Itaú para se refugiar no centro do Rio. Todos esses e ainda muitos outros são e foram os vândalos. Nesse Movimento, o vândalo foi a vanguarda do vinagre, a fúria sem cara da rejeição enérgica às políticas governamentais e a demonstração irrefragável de que aquela REVOLTA não era uma pacata romaria: ali estavam todos decididos a fazer o poder tremer. E o poder tremeu. Contra as reuniões intermináveis e as comissões inconclusivas de administrações públicas e seus partidos, surgiu esse mal chamado vandalismo: a contraviolência imediata que, sem provocar mortes, ameaça e reprova o poder instituído em sua capacidade de dar respostas efetivas e principalmente preventivas à insatisfação, deixando atônitos os atravessadores da representação que se habituaram a ser comissionados pelo quinhão de legitimidade que confiscam das causas que simulam defender.

O colapso mundial das ideologias difundiu uma retórica dos “direitos” hipócrita e homogênea, capaz de tornar idênticos os programas à esquerda e à direta, prova cabal de que o poder econômico colonizou a política com o sensacionalismo das causas urgentes, coisa que no fundo ludibria o povo do continuísmo estrutural de que ele necessita para se exercer em seu próprio benefício: os donos dos bancos precisam dos chefes das armas que os deixem em paz nos seus negócios que envolvem a predação da coisa pública. Então que ninguém se engane com altas expectativas: se nesse salto para o desconhecido todos caírem de bunda (ou de boca) não há problema algum. O intenso aprendizado político desses dias turbulentos já terá sido muitíssimo válido, ultrapassando em muito o estéril “socialismo da granola” que certa elite milita como alívio humanitário das suas culpas em ONGs e outros espaços ocupacionais, ornamentais e frequentemente corruptos da democracia.

Esse é sobretudo um movimento sem Vandré nem Lindberg, sem trilha nem líder. Quando no dia 17 de junho indaguei a um jovem manifestante na Avenida Presidente Vargas o que ele achava de tudo aquilo, ele me respondeu sorrindo: O MOVIMENTO É SEXY. Foi assim que completei a sentença que dá título a esse texto: sem Vandré nem Lindberg, o movimento é sexy. E não por ser sensual e bem humorado ele deixa de ser sério em seus propósitos. É um movimento dos milhões de corpos desejantes e sofredores que se encontraram reclamando os seus deslocamentos horizontais pacíficos e tranquilos. Portanto, é também um Movimento simultaneamente pela liberdade e por alguma noção difusa de igualdade. É um movimento de cidades como lugares concretos da existência feliz, e não de abstrações jurídicas e simbólicas reivindicadas pelos discursos totalitários, tais como a Nação ou o Estado. Em meio às dezenas de demandas corporativas que transformaram a política em um bazar de lobbys, a causa da mobilidade urbana mostrou-se portadora de um núcleo de universalidade capaz de aglutinar a indignação pelo cínico desleixo com muitos outros domínios da coisa pública.

Com efeito, não há muito o que dizer a quem indague sobre o futuro desse Movimento. Pessoalmente creio que ele já se tenha esgotado nessa sua dimensão gigantesca. Ele irrompeu como uma demonstração de unidade e força, como a afirmação presencial de um desgosto massivo que pode se capilarizar em uma malha de demandas focais mais ou menos interconexas e até potencialmente contraditórias. Mas quem se arvore a dizer para onde ele vai, talvez deva ser lembrado de que não foi capaz de dizer que ele viria. Os partidos o subestimaram e agora lamentam terem sido hostilizados e banidos do que se construiu à margem de suas capacidades de mobilização: terão de lamber as suas feridas e lidar com isso. Que alguns militantes reduzam o ocorrido à caricatura queixosa e vitimista de um “fascismo” é até aceitável. Porém, que os cientistas sociais se mostrem dispostos a endossar o mito do POVO FASCISTA CONTRA OS PARTIDOS é execrável. Como é ainda mais triste notar as suas ferramentas analíticas toscas ou completamente ineptas na incorporação de fenômenos quase sempre ausentes em suas interpretações elaboradíssimas para falar do Estado e tão patéticas para enxergar os elementos sociais cuja compreensão demandam finas habilidades teóricas relacionadas à moda, ao cinema, à fotografia, à música, às artes, aos esportes, ao carnaval, à sexualidade, à violência urbana, ao design, à psicologia social, aos sentimentos morais e ao impacto das novas tecnologias de comunicação e interação na construção identitária intersubjetiva.

Pela primeira vez viu-se um movimento no qual a opinião pública não mais aceitou ser a opinião publicada e pôde fazer algo além de simplesmente lastimar a manipulação: repórteres foram impedidos de trabalhar porque estavam MENTINDO a serviço de corporações cúmplices dos interesses econômicos que encontraram nos Governos os seus capachos mais obedientes. E mentir hoje significa antes de tudo selecionar e editar imagens na construção artificiosa de uma versão. Eis outro dado valioso a ser considerado: também pela primeira vez a supremacia tecnológica do “ao vivo” apassivante da TV foi afrontada pelo protagonismo do “vivido e compartilhado”. E isso se percebe na discrepância entre as análises feitas por aqueles que assistiram aos eventos editados pela TV e por aqueles que os vivenciaram no fluxo das ruas e os acompanharam simultaneamente pelas narrativas das mídias em rede. Uns ficaram preocupados com o suposto descontrole dos vândalos, outros atuaram na construção sinérgica de um povo à procura da sua identidade. Foi assim que, na guerra semântica pela estigmatização dos vândalos, o tiro acabou por sair pela culatra: o primeiro espancamento dos manifestantes em São Paulo produziu uma onda de solidariedade em todo o Brasil, acirrando a indignação e desencadeando uma sincronização das manifestações por várias cidades.

Durante a primeira manifestação no Rio de Janeiro, em uma rápida postagem feita da Cinelândia, chamei a invasão do Congresso Nacional em Brasília de A QUEDA DA BOSTILHA. Mais de duas centenas de pessoas voluntariamente se identificaram com o humor desse trocadilho, o que só indica que a repulsa e o nojo são as principais formas de expressão da INDIGNAÇÃO, um sentimento que ultrapassa a razão crítica dos argumentos para se alojar nas vísceras responsáveis pelo ato excretor. Estar INDIGNADO significa: não mais considerar visceralmente os seus representantes dignos de confiança no exercício da gestão dos interesses comuns de uma comunidade cooperativa. Assim, a energia social desse movimento provém de uma disposição básica empenhada em recusar um líder e um centro para se afirmar soberanamente como a voz de uma comunidade unida apesar da sua imensa diversidade. Essa comunidade (povo, massa, multidão) foi suficientemente politizada para rechaçar qualquer tutela adesiva, direcionante e cooptadora, afirmando com uma radicalidade surpreendente o seu pertencimento comunitário como o fundamento maior e anterior a qualquer posicionamento partidário. E foi sem centro nem líder que a sociedade civil desorganizada sublevou-se contra os partidos que governam mal o Estado.

Na manifestação da Av. Presidente Vargas, ficou claríssimo que não existe contingente policial que pudesse enfrentar ou dispersar MAIS DE UM MILHÃO de pessoas reunidas. Por isso a ação da polícia (que parecia realizar um exercício para os grandes eventos)  foi covarde e traiçoeira: emboscar e atacar sem motivo uma multidão que já retornava para as suas casas. O objetivo maior: difundir o medo. O resultado prático alcançado: organizar o ódio contra os Governos e seus partidos. A condição prática para que a PM assim procedesse foi o suporte das tropas da Força Nacional, sob o comando do Governo Federal,  que já estavam de prontidão para a Copa das Confederações e que poderiam ser mobilizadas caso a batalha campal contra o povo desarmado se tornasse mais difícil. No Rio, entre alguns poucos focos de depredação e raiva contra a pusilanimidade da PM, uma palavra de ordem era escandida em uníssono: “ES-COLA NÃO! ES-COLA NÃO!” E os ditos vândalos escutaram essa mensagem: a escola foi imediatamente poupada. Mas quando algum grupo contrário às demais depredações escandia “SEM VAN-DALISMO!”, outro grupo, em apoio a elas respondia pacificamente: “SEM MO-RALISMO!”. De algum modo, compreendeu-se a efetividade da força coativa da violência popular, o poder de disseminar, mais entre as autoridades do que entre o povo, o temor de um caos social incontrolável, algo capaz de provocar rápidas reações políticas.

O vinagre, a pedrada e a postagem: milhões de pessoas, centenas de faixas e cartazes. Por óbvio, revolta não é revolução. Mas de vez em quando convém tirar o pó dessa palavra que serve para falar de astros e aterrorizar tiranias, apesar de tudo estar sendo feito estritamente dentro da nossa Constituição, que preceitua no parágrafo único de seu artigo 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. No plano global das instituições, e até gramaticalmente, esse “ou” é em geral entendido como um “e”: ele sugere uma soma cooperativa, não uma disjunção substitutiva. Todavia,  no plano concreto dos últimos acontecimentos, depois de décadas e décadas de letargia e oportunismo de nossos partidos, esse é o momento para se recordar que a representação só existe para prestar serviço ao povo, e não ao contrário, pois quem se faz PRESENTE pode também dispensar o seu REPRESENTANTE. Algo tão simples como essa interpretação também possível do que está na Constituição: OU DIRETAMENTE.

Na tentativa de interpretação desse Movimento, rios de tinta correrão em teses e artigos científicos. A magnitude de um evento social que bateu em mais de 10 vezes as primeiras passeatas das DIRETAS JÁ não pode ser tratada pela leviandade dos interesses de ocasião. Alguns partidos procurarão dar a esse movimento o sentido de um FORA DILMA, o que será uma impostura abusiva. Outros tentarão defender o Governo da ameaça de um Golpe inexistente, o que será uma reação ainda mais patética e oportunista. Ambas as posições extremadas pretenderão manipular o povo sem ouvi-lo ou procurar implementar os meios para educá-lo ou atende-lo em suas demandas por serviços públicos eficazes e de qualidade. Entre fantasmas e promessas, acredito que a única coisa sensata a ser dita infelizmente não encontraria momento oportuno, maturidade política nem grandeza no espírito dos homens públicos para se viabilizar em uma grande, longa e minuciosa reforma social e política de remoralização do Estado brasileiro: CONSTITUINTE JÁ.

Apesar de um certo desconsolo, é com os partidos de esquerda que eu me identifico. Mas, ao que tudo indica, o carrancudo leninismo de almanaque dessas organizações vem dando provas de que elas são péssimas em análises quando a matéria é o povo real – esse detalhe da democracia. Parece que os nossos candidatos à condição de vanguarda perderam não só o trem da história, como também o bonde, o ônibus, a barca, o metrô, a lotação, o táxi, a bicicleta e até o skate. A pedestre tristeza por terem sido rejeitados pelo mesmo povo que almejavam liderar, essa espécie de orfandade hegeliana da grande mãe História, também se pode compreender por sua inclinação em fantasiar inimigos. Porém a nova direita não quer mais saber de Vandrés nem de golpes: ela é o capital sem cara que perpetua suas relações imorais e ilegais com o poder público violento. Resta saber por onde andará a novíssima esquerda, já que a chamada nova esquerda tornou-se rapidamente tão obsoleta que parte dela até ajuda a produzir esse estado de cleptocracia e de violência policial que aí está.

Gostaria ainda de dizer a quem teve a paciência de acompanhar esse texto até aqui que ele é escrito por um professor universitário que se sente orgulhoso em contar que ingressou aos 14 anos de idade na Juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB), hoje extinto. Foi no movimento estudantil,  e como dirigente da União da Juventude Comunista, entre aulas de russo e de filosofa, que aprendi a pensar os problemas da política face à degeneração dos modelos de organização partidária. Foi também como jovem militante que descobri em certos poetas a poderosa fonte de uma lucidez crítica que sempre procurou, como no caso de Maiakovski, colocar-se ao lado do povo e contra a demagogia corporativa das burocracias estatais e partidárias. E ao agradecer a leitura, encerro esse texto com um poema de Hilda Hilst, não por acaso dedicado ao dissidente soviético Andrei Sakharov.

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de cima do palanque
de cima da alta poltrona estofada
de cima da rampa
olhar de cima

LÍDERES, o povo
Não é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.
POVO, POLVO
UM DIA.

O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.

E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA.

[Hilda Hilst]

MARCUS FABIANO GONÇALVES

SOBRE OS GRANDES ANTÔNIOS

Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rêmora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se veem e choram na terra tantos naufrágios.
Antônio Vieira, Sermão de Santo Antônio aos Peixes

 

CARTA À POETA QUE EXAMINA SEUS MEDOS, OU GLOSA SOB OS AUSPÍCIOS DA LÍNGUA DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA, TAMBÉM DITO DE PÁDUA, QUE OPEROU MILAGRES QUANDO FOI PREGAR AOS PEIXES E TOMAR SOPA ENVENENADA

você já deveria saber que no meu bloco desfilam balões e bolcheviques, fuzis e margaridas. e somente agora nota as tais fitas alegóricas ao redor do andor? meu olho não é seco, é de terra. e se uma água o molha, não vem da íris nem é nada cristalina. por isso esse barro, essa lama, ante a qual erra muitíssimo quem a pense suja. não permanece aí, ela surge. e ao chegar, é uma argila: a mesma de que é feito o homem e suas costelas, pois as barras dessas jaulas que no peito levam nossos tigres, não detêm o sopro de um colibri. não é apenas da carne que lhe falo. é também da alma, da miraculosa língua de santo Antônio, até hoje conservada intacta. quem prega sacrifícios se santifica. entretanto vive ou se mantém cativo? o santo vai à praia se o povo lhe dá as costas. e então sua palavra faz piscosas certas águas quase mortas. porém nenhum remorso previne erros com cautelas. no miracolo della minestra a fé mudou o veneno em alimento quando Antônio disse ao agiota: é por vossa alma que tomo essa peçonha de cobra. daí convém aceitar a suprema realidade e arriscar o ímpeto apesar da falha. a soberba inflama a sarça se a invocação de um santo indaga: tentando se é tentado? embora peque e morra, o santo é mais forte porque acredita. ele acode a quem menos se imagina. sua fé ama o quanto desafia. ela é a fome de um pão ainda sem seu trigo: a confiança que une a graça ao pedido. é pura promessa e espera pois conhece o lugar onde a semente guarda o tempo. sei (e sabemos) que são do humano tanto a raiva como o ciúme. e que por bem pouco pode a vida se tornar tão ácida, afinal todo corpo apodrece e passa. mas, enquanto aguarda, a palavra é mágica. e ela fica, não finge que confia. a luz é boa mesmo se às vezes o seu brilho é duro, sobretudo, caso reúnam, junto à santa língua, diamante e dinamite. a fé transmuta quem dela se ilumina. e aclara bastante aquele que duvida. ela não entende, não explica, não decifra. antes redime e nem sempre é macia. e se remove até montanhas, não lhe seria fácil demolir a esfinge? contudo a fé a trata como se inexistisse. o seu mistério não é charada nem enigma. não devora nem adivinha: meramente inspira. se é fácil? quem disse? no bem querer, o simples é ainda mais difícil.

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Relíquia da língua de Santo Antônio de Lisboa, em Pádua

 

BREVE COMENTÁRIO SOBRE O POEMA

 

Durante a Idade Média da Europa, os plebeus pobres que deviam a agiotas eram impiedosamente encarcerados e chegavam a ter suas esposas forçadas a se prostituírem para o resgate de suas dívidas. Centenas de famílias foram assim aniquiladas. Era a crueldade dos usurários da época. Isso aconteceu até que, em 1231, na cidade de Pádua, um frei português, jovem jurista e exímio orador de origem aristocrata, pusesse em prática uma ideia: organizar frentes de trabalho de monges para recomprar a liberdade desses homens presos e aliviar o sofrimento das suas esposas. Com a força dos próprios braços e  sermões implacáveis contra a avareza e a agiotagem extorsiva, ele moveu uma campanha vigorosa contra a infâmia da prisão civil por dívidas, conquistando assim uma mudança pioneira na legislação da época. Tratava-se do nobre português Fernando Martim de Bulhões, que receberia do próprio Francisco de Assis o nome de Antônio, em lembrança a outro Antonius que lhe antecedera por quase 1000 anos: Santo Antão, o eremita do deserto egípcio (251-356 dC).

Por ter se tornado conhecido como Santo Antônio de Pádua, lugar próximo de onde morreu, no ano de 1231, muitos pensam até hoje que ele fosse um italiano. Mas não: a sua língua, que milagrosamente jamais apodreceu, é uma genuína língua portuguesa, por isso ele é também chamado Santo Antônio de Lisboa, cidade onde nasceu ao redor do ano 1195. Inclusive o Papa Leão XIII emitiu uma bula autorizando especificamente também o uso dessa designação, conferindo-lhe também o título de Doutor da Igreja e o epíteto de Santo de Todo o Mundo graças à sua erudição eloquente, posta a serviço de um incrível périplo evangelizador mundo afora, pelo qual também seria conhecido pelos epítetos de “martelo dos hereges” e “arca do testamento”. Em nosso espaço luso-brasileiro, em sua homenagem seriam batizados dois dos maiores escritores do nossa idioma: o jesuíta Antônio Vieira e o poeta Fernando Antônio Nogueira Pessoa, que lhe rende dupla homenagem, tendo nascido exatamente no seu dia, 13 de junho. Aliás, Pessoa chegou a dedicar ao seu patronímico o poema abaixo, deveras iconoclástico.

SANTO ANTÓNIO

Nasci exactamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir…
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.

(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João…
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante … Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera…
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.

Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.

Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.

Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.

Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.

(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? …
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.

És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu —
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António —
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?

[Fernando Pessoa]

Com efeito, a discussão por trás do complexo processo histórico da abolição da prisão civil por dívidas não é uma mera questiúncula teológica: trata-se de tema autenticamente filosófico e de direta repercussão na teoria econômica. Ao atravessar os séculos, ela alcançaria ninguém menos que Karl Marx com a formulação de sua incômoda pergunta: afinal, qual seria a origem da riqueza humana? Impressionados com o surgimento dos bancos e do sistema creditício no gueto hebreu da República de Veneza, muitos já compreendiam que a riqueza humana provinha do lucro com os juros (ou anatocismo), enfim, de uma espécie de preço humanamente estipulado para o tempo. Outros, seguindo mais de perto a doutrina de Santo Agostinho, ofereceram uma resposta um tanto mais complexa e ousada a tal questão: a real origem da riqueza humana seria o trabalho, em especial aquele sobre os meios de produção, coisa que, no mundo medieval, resumia-se essencialmente à terra agricultável. Pois bem: lida com a devida atenção essa genealogia,  já se encontra nessa polêmica entre usurários e trabalhadores o próprio alvorecer do conceito marxiano de mais-valia, tão decisivo para se compreender a dinâmica da exploração capitalista.

O poema acima, do Arama Faldo, exibe um caráter francamente pseudoanagógico ao invocar também o  Sermão de Santo Antônio aos Peixes, do Padre Vieira, e discutir os mistérios da fé em um mundo bem anterior ao nosso conceito antropocêntrico de ciência. Trata-se de uma singela homenagem àquele imenso Antônio em um país que, desconhecendo sua formidável história, o mantém na baixíssima conta de um mero santo casamenteiro. Para melhor ambientar o leitor nessa atmosfera, digamos, hagiográfica, sugiro também um trecho específico do filme  Sant’Antonio di Padova, de Umberto Marino, no qual se pode conferir, à altura de 01:20:32 minutos, a cena do milagre da sopa, ou miracolo della minestra.