ESPÍRITOS DE GUGU

por Marcus Fabiano

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Ary Barroso e Augusto Temístocles Costa (Tião Macalé) no Show do Gongo

O PENTE E O BACALHAU

Egydio Guerra, Filólogo

A trágica morte de Gugu Liberato revelou toda a pujança da colonização brasileira dos Estados Unidos pelos arrabaldes de Miami. Mas não aquela colonização à moda antiga, disposta a aniquilar apaches e impor identidades. Gugu era uma espécie de rebote da mais pura cafonice devolvida às suas origens. Corriam os anos 1980, e nos embalos do Viva a Noite o Brasil se forjava nos tubos das TV’s a cores uma nova alma sertaneja entre o kitsch e o tropical. Era o fim da ingenuidade do caipira, o lifting em Mazzaropi, a diversão sublimada em bizarrice erótica, inclusive com direito a lampejos pós-modernos. Em milhões de lares de uma só tela, uma betoneira do brega revirava-se por horas a fio sem que crianças ou adolescentes esboçassem qualquer reação à total hipnose de pais, tias e avós. Eram (ou seja: fomos) totalmente medusados.

Varrendo a poeira vermelha com as franjas do velho Western, ou pondo-se sob as abas do chapéu de cowboy, rodeios de bugres e caboclos ficaram muito mais texanos com Gugu Liberato. No SBT, Jean-Claude Van Damme de pau duro diante do rebolado da Gretchen antecipava em décadas o primarismo estético de Bacurau: as emulações de um sub-Bruce Lee em pleno cabaré fingido com chacretes da concorrência. Gugu teria sido páreo ao apelo melodramático do barroco mexicano das novelas ou à colorida plebe rude dos grotões da Índia de Bollywood. Mas por mais que se o prateie, ninguém jamais tomou a ousada iniciativa empreendedora de dublá-lo para chineses, coreanos ou mesmo para nossos irmãos latino-americanos. O brasileiro que nunca confiou direito na radicalidade do próprio cinema, não teria razões para fazer diferente com seu entretenimento. Talvez o seu sucesso impedisse a corrida amarela pelo 5G e até nossas tristes pulsões bolivarianas, pois quem subestima Gugu em regra esquece do vanguardismo da sua entrevista fake com os membros do PCC e apenas recorda sua mórbida expedição à pirâmide onde jaz a múmia de Dercy Gonçalves.

No fundo, a morte de Gugu Liberato confirma a eternidade de Sílvio Santos como único ente à altura de Chacrinha nos terreiros em competição. Pouco importa se Gugu trabalhava para Edir Macedo ou se fora sondado em priscas eras pelo próprio Roberto Marinho. Gugu morto é o momento exato em que o pente do camelô do Show de Calouros intercepta o bacalhau lançando ao auditório do Cassino do Chacrinha. Por isso a tão lenta devoração antropofágica do seu corpo midiático por abutres do jornalismo e feras da “classe artística” levou mais de uma semana, em novembro de 2019. Uma única certeza ecumênica nos resta: continuamos em plena era do rádio. E apesar da Internet, o programa de Ary Barroso segue sendo um estrondoso sucesso.

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Publicado na Revista Inteligência n. 87

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