INVENTAR A RODA

por Marcus Fabiano

RODA

Quando os metafísicos falam pouco, podem atingir a verdade imediata, uma verdade que seria consumida pelas provas. Podemos então comparar os metafísicos aos poetas, associá-los aos poetas, já que estes nos revelam, num verso uma verdade do homem íntimo. Assim, do enorme livro de Jaspers, Sobre a Verdade, extraio este julgamento lacônico: ‘Todo ser parece em si redondo.’

Gaston Bachelard, A fenomenologia do redondo

O ELOGIO DA CURVA

muito acima de ripas e réguas, na microscopia da vista aérea, um rio zomba das pistas de pouso: quem sabe o luxo dos contornos, cedo recusa o tal circuito econômico – aquele que apenas liga por retas dois pontos. o molar e o aquoso, a socapa felina no boleio muscular sobre o osso. a elegância do oblongo percorrendo as inclinas de um vulto redondo: caracóis, heras, conchas, cornos. um capitel de volutas e a viperina peruca da Medusa: o art noveau de Alfons Mucha. o seio, a coxa, a língua, a nuca. o lábio, o ventre, a glande, a vulva. tudo que ante a seta ainda mais se insinua na eloquência fugaz das minúcias que descem à célula (e outras coisas miúdas) para depois irromper em vasta mesura. ditame e sintoma de um cisma: repleta de peripécias, a volta no meio do caminho. tal como a pressão sobre a eclusa da água mole retida de brusco: o relógio parafusando o tempo no pulso e uma azenha girando a entropia do mundo. mas do grafite da coral ao grosso calibre da jiboia, uma curva pode sempre ser perigosa. e não raro também pode ser torpe, feito alfanje ou lua negra de foice. ou tal um pião suicida que desviando dervixes evitasse sendas constelares, deixando só um rastro errático entre o abrasivo e o cálido. desvio natural, exímio trabalho na recalcitrância do calmo contra seus obstáculos: um esmeril erodindo arestas e cantos do espaço, o anguloso mudando-se em ágono, a gravidade ninando a catenária no cabo, a rosca da verruma no espiral de seus cachos: a tromba, o tufão, o tornado. as folhas rodopiam no pátio enquanto um arquiteto prefere o jeito mais caro: unindo a viga à coluna, o arco. além das formas e fibras que uma roca fia e enovela: a roda de samba que o quadril instaura e vertebra, a capoeira e o jongo das pernas, a finta do craque para delírio da galera e toda ciranda e ciclo presentes na elegante figura de um ovo: o volume dado à elipse de certa carenagem que fosse em parte ogiva e noutra globo, pela metade. curva: ninho e ovário dos corpos multiplicados, fábrica da vida, picadeiro de astros, símbolo perpétuo do elo, da coroa e do halo. e no compasso de Copérnico, um crisol de credos: a música das esferas na órbita de Hélios, o mar português de Magalhães em seu périplo.

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