ARAME FALADO

MARCUS FABIANO GONÇALVES

INVENTAR A RODA

RODA

Quando os metafísicos falam pouco, podem atingir a verdade imediata, uma verdade que seria consumida pelas provas. Podemos então comparar os metafísicos aos poetas, associá-los aos poetas, já que estes nos revelam, num verso uma verdade do homem íntimo. Assim, do enorme livro de Jaspers, Sobre a Verdade, extraio este julgamento lacônico: ‘Todo ser parece em si redondo.’

Gaston Bachelard, A fenomenologia do redondo

O ELOGIO DA CURVA

muito acima de ripas e réguas, na microscopia da vista aérea, um rio zomba das pistas de pouso: quem sabe o luxo dos contornos, cedo recusa o tal circuito econômico – aquele que apenas liga por retas dois pontos. o molar e o aquoso, a socapa felina no boleio muscular sobre o osso. a elegância do oblongo percorrendo as inclinas de um vulto redondo: caracóis, heras, conchas, cornos. um capitel de volutas e a viperina peruca da Medusa: o art noveau de Alfons Mucha. o seio, a coxa, a língua, a nuca. o lábio, o ventre, a glande, a vulva. tudo que ante a seta ainda mais se insinua na eloquência fugaz das minúcias que descem à célula (e outras coisas miúdas) para depois irromper em vasta mesura. ditame e sintoma de um cisma: repleta de peripécias, a volta no meio do caminho. tal como a pressão sobre a eclusa da água mole retida de brusco: o relógio parafusando o tempo no pulso e uma azenha girando a entropia do mundo. mas do grafite da coral ao grosso calibre da jiboia, uma curva pode sempre ser perigosa. e não raro também pode ser torpe, feito alfanje ou lua negra de foice. ou tal um pião suicida que desviando dervixes evitasse sendas constelares, deixando só um rastro errático entre o abrasivo e o cálido. desvio natural, exímio trabalho na recalcitrância do calmo contra seus obstáculos: um esmeril erodindo arestas e cantos do espaço, o anguloso mudando-se em ágono, a gravidade ninando a catenária no cabo, a rosca da verruma no espiral de seus cachos: a tromba, o tufão, o tornado. as folhas rodopiam no pátio enquanto um arquiteto prefere o jeito mais caro: unindo a viga à coluna, o arco. além das formas e fibras que uma roca fia e enovela: a roda de samba que o quadril instaura e vertebra, a capoeira e o jongo das pernas, a finta do craque para delírio da galera e toda ciranda e ciclo presentes na elegante figura de um ovo: o volume dado à elipse de certa carenagem que fosse em parte ogiva e noutra globo, pela metade. curva: ninho e ovário dos corpos multiplicados, fábrica da vida, picadeiro de astros, símbolo perpétuo do elo, da coroa e do halo. e no compasso de Copérnico, um crisol de credos: a música das esferas na órbita de Hélios, o mar português de Magalhães em seu périplo.

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A EMA GEMEU

ovo

EMAS

quem
não
veria
apenas
fêmeas
entre
emas
que
sem
mais
avestruzam
por entre
etruscos
arcos
ecos
do patriarcado
em seu
chocar
de ovos
pelos
machos?

.

[O resmundo das calavras, 2005]

.

O PÚBLICO PRIVATIZADO

carro

A CASA NA RUA

a casa grande
sobre rodas
(tração 4×4)
borrifa diesel
engarrafada
pelo tráfego

a mim me vejo
em suas janelas
de vidro negro

e rente às grossas
esquadrias de aço
quem não me vê
quando passo
quase atropelado?

era uma casa
nada engraçada:
parecia bunker
parecia cápsula.

.

SUENÃ Y FULGURA: NICOLÁS GUILLÉN E CANDIDO PORTINARI

O poeta Nicolás Guillén (1902-1989) foi para a revolução cubana o que Maiakovski havia sido para a russa: a grande assinatura poética do processo. Mas ao adotar a perspectiva afronegrista de uma poesía mulata, sua obra começa muito antes do triunfo de Fidel Castro e Che Guevara, ocorrido em diapasão nacionalista e libertador no ano de 1959.  Desde a década de 1920 Guillén já investigava os lugares cultural e político do negro nas sociedades antilhanas, mobilizando poderoso arsenal crítico e músico-etnográfico acerca do escravismo instaurado pelas práticas coloniais entre os arquipélagos e os continentes. Em 1931, publica Sóngoro Cosongo, livro que encontra em mitos e ritmos da musicalidade popular de Cuba a estrutura receptiva capaz de amplificar ainda mais as suas criações. De Quevedo a Cervantes, dos cantos escravos ao mundo da pirataria, Nicolás Guillén cultivou fecundo contato com a mais alta tradição ibérica. E ao mesmo tempo desenvolvia, desde Moscou ao Rio de Janeiro, intensa militância vinculada ao internacionalismo socialista. Tornando-se amigo de Lorca, combateu o fascismo franquista na guerra civil espanhola, cujos desdobramentos chegou a testemunhar in loco em 1937, ano em que também publica España – poema en cuatro angustias y una esperanza.

CAPA

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Guillén reclamava-se um filho negro da América e da África, compreendendo a diáspora transatlântica como rota de inusitadas mestiçagens entre etnias e culturas. Aí incluído o fluxo anglo-saxão, a respeito do qual refletiu esteticamente em um fértil contato com o poeta negro norte-americano Langston Hughes.  Na década de 1950, com a ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba, Guillén encontrava-se exilado em Paris, seguindo depois para Buenos Aires. E foi lá na capital da Argentina que conheceu o brasileiro Candido Portinari (1903-1962). Contudo, não se sabe a data precisa em que Guillén compôs Un son para Portinari  tratado nessa postagem. Conta-se que Guillén simplesmente anotou em um guardanapo de papel o que o povo latino-americano teria de melhor e mais singelo para oferecer ao pintor brasileiro, como ele, também um comunista alinhado pela III Internacional. Apenas em 1978 esses versos seriam musicados pelo chileno Horácio Salinas, do conjunto Inti-Illimani. Desde então, diversos arranjos foram gravados, como o dessa contundente interpretação por Mercedes Sosa, com direito a charmosos beijinhos e uma elegante danza de pañuelos. Observe-se que a maior voz da América Latina se apresenta em programa da Rede Globo de Televisão, apoiadora de primeira hora do golpe militar de 1964. Transmitido em cadeia nacional, durante a transição da ditadura militar no Brasil, percebe-se que a ideia de censura era já bem menos grave, e que o transformismo das elites culturais ávidas pelo aumento da visibilidade era notório.  No entanto, estes serão temas a  ser revisitados com redobrada atenção crítica em outro momento, alcançando inclusive suas capilarizações em redes privadas, alianças matrimoniais e apadrinhamentos posteriores, todos que conseguiram, no frigir do ovos, ser atrelados ao mundo midiático e à indústria fonográfica falida em termos de milionários direitos autorais garantidos por vetustas leis e fornecimento de conteúdos “terceirizados” (financiados por leis de incentivo) aos canais de concessões públicas. Fora isso, que absolutamente não é pouco, nota-se o belo arrebatamento de Chico Buarque e Caetano Veloso, ambos ainda jovens, entre outros admirados com a potência de Mercedes Sosa  na homenagem de um criador comunista dedicado a outro, movimento ao qual, importante fixar a petizes e neófitos, nenhum dos dois cantores brasileiros jamais pertenceu, muito antes pelo contrário. À época do MDB, por exemplo, Caetano Veloso tecia loas a Antônio Carlos Magalhães, da ARENA – Ação Renovadora Nacional, depois PDS, Partido Democrático Social, da Bahia, os braços civis da ditadura militar e antigos partidos do então presidente da República, José Sarney. Esse autêntico fosso geracional seria ainda mais profundamente cavado com uma “transição lenta, segura e gradual”, ora em curso, na qual artistas que jamais foram complemente proibidos ou exilados, mantiveram contratos com grandes gravadoras estrangeiras, procurando depois empresariar suas influências associados em empresas de produção privadas a atuar como lóbis em plena representação governamental. Naturalmente, muitos criadores ficariam de fora de tais articulações corporativas provenientes da iniciativa privada. Seria Belchior o caso mais expressivo? Custo a crer.

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Candido Portinari, Menino com carneiro, 1954

Tal como na relação entre os Pablos Neruda e Picasso, Nicolas Guillén identificou na gramática de Portinari um alto trato da saga dos oprimidos em cujo sangue confluíam refregas ou renitências de ex-escravos, trabalhadores rurais e urbanos, todos forjados na mescla dos legados ibero-afro-ameríndios.  O ano de 1940 seria decisivo para a consagração mundial de Portinari. Foi nesse ano que o Museu de Arte Moderna de Nova York dedicou sua primeira exposição individual a um artista latino-americano na mostra Portinari of Brazil. Com a derrota do nazifascismo e a ampla simpatia granjeada pela libertação soviética dos campos de concentração na Europa, Portinari foi lançado a candidato a deputado federal constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro em 1945, e a senador, em 1947, pleito no qual, embora figurasse como vencedor em diversas pesquisas de opinião, acabou derrotado por uma ínfima diferença de votos, fato esse que suscitaria desconfiança e suspeitas de fraude.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro de Getúlio Vargas comissionou Portinari para, à sua escolha, desenvolver uma obra em grandes dimensões com a qual seria presenteada a jovem Organização das Nações Unidas – ONU. A pintura então planejada foi um díptico originário do título do romance de Tolstoi, Guerra e Paz, contando com aproximadamente setenta personagens, em dois painéis  imensos e de medidas idênticas, 14 por 10 metros (ao todo: 28 por 20 metros). O painel esquerdo aborda a desgraça e os sofrimentos da guerra. Já o segundo figura a prosperidade e a normalidade proporcionadas pela paz reinante. As figuras humanas provêm diretamente do léxico de motivos, inclusive retirantes nordestinos,  outrora já pintadas por Portinari. O conjunto é considerado unanimemente pela crítica como uma universalização monumentalizante do homem brasileiro. O díptico de dimensões e temas épicos trouxe a Portinari em 1956 um prêmio da Solomon Guggenheim Foundation. Contudo, o artista plástico brasileiro jamais veria seu trabalho fixado no prédio da ONU, em Nova York, pois os Estados Unidos da América negaram-lhe sistematicamente o visto de ingresso no país por se tratar de um pintor comunista. Em meio ao marcartismo, Guerra e Paz foi então inaugurado sem a presença do seu pintor. A obra consumiu não somente as energias pictóricas de Portinari: foi também a causa direta de seu exaurimento pela toxicidade das tintas com que trabalhava incessantemente sobre o compensado naval a fim de estabelecer uma poética visual que ao cabo se discernisse da gigantesca estética picassiana. E o brasileiro enfim conseguiu. Com intensa produção entre 1952 e 1956, Portinari falece em 1962, ocasião na qual Drummond dedica-lhe, em Lição de coisas, este formidável poema:

A MÃO

Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
E nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta 
o que não é para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módulo-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos.
A mão cresce mais e faz
do mundo como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação por que tudo tem (nova) cor.
Tudo existe por que foi pintado à feição de laranja mágica,
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da Terra domicílio do homem.

Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.
Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.

Ao redor da década de 1960 acelera-se o declínio hegemônico dos grandes artistas de esquerda, os quais seriam paulatinamente substituídos, no panorama mundial, pelo convescote do bazar identitário combinado a certa pintura sem homens nem sociedade, o tachismo e o expressionismo abstrato, este último um movimento francamente estimulado e financiado pela CIA e suas agências ramificadas em fundações dominantes desde a crítica acadêmica à mais minuciosa fabricação da consagração. Com obras invariavelmente voltadas aos mercados contemporâneos, os expressionistas abstratos figuravam em revistas e eventos, procurando deixar para trás o cânone do cubismo político (de matiz comunista, em especial desde Guernica), buscavam assim reorientar ideologicamente as débeis elites do Terceiro Mundo por um assimilacionismo sem paralelos. Diretamente ou por vias oblíquas, museus, galerias, escritores, músicos e intelectuais entrariam na folha de pagamento de sucessivos governos norte-americanos (inclusive com discursos “socialistas”). Hoje enclausurada em coleções de particulares, 95% dos cerca de 5.000 itens da obra de Candido Portinari tornaram-se praticamente inacessíveis ao grande público. Mesmo assim, nosso maior pintor ainda sonha e fulgura, como tão bem disse Nicolás Guillén no son que lhe dedica. Sem um grande museu que lhe seja votado com exclusividade, a última grande exibição de Candido Portinari, intitulada Portinari Raros, percorreu todas as sedes Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) durante o último ano do governo de Jair Bolsonaro, com direito a um vídeo em mapping com duração de 8 horas contínuas apresentando a integralidade da obra do pintor. Na ocasião, a despeito dos poucos originais, um grosso catálogo raisonné à entrada da sala de vídeo também trazia a dimensão da obra completa do artista a qual, administrada por herdeiros, atingiu preços estratosféricos em negócios privados entre colecionadores, marchands e galeristas.

Em 2010, os painéis de Guerra e Paz deixaram a ONU e retornaram ao Brasil a fim de sofrer a estauração no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, de fevereiro a maio de 2011, em um ateliê especialmente montado para permitir a visitação pública durante os reparos. Após um périplo por várias cidades do mundo, os painéis de Portinari de duas toneladas retornaram à sede da ONU, já reformada, em Nova York no ano de 2015.

O poeta cubano Nicolás Guillén

UN SON PARA PORTINARI

Para Cándido Portinari
la miel y el ron,
y una guitarra de azúcar
y una canción,
y un corazón.
Para Cándido Portinari
Buenos Aires y un bandoneón.

Ay, esta noche se puede, se puede,
ay, esta noche se puede, se puede,
se puede cantar un son.

Sueña y fulgura.
Un hombre de mano dura,
hecho de sangre y pintura,
grita en la tela.
Sueña y fulgura,
su sangre de mano dura,
sueña y fulgura,
como tallado en candela;
sueña y fulgura,
como una estrella en la altura,
sueña y fulgura,
como una chispa que vuela…
sueña y fulgura.

Así con su mano dura,
hecho de sangre y pintura,
sobre la tela,
sueña y fulgura,
un hombre de mano dura.
Portinari lo desvela
y el roto pecho le cura.

Ay, esta noche se puede, se puede,
ay, esta noche se puede, se puede,
se puede cantar un son!
Para Cándido Portinari
la miel y el ron,
y una guitarra de azúcar
y una canción,
y un corazón.

Para Cándido Portinari
Buenos Aires y un bandoneón.

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Guerra e Paz, sede da ONU em Nova York

CAMÕES, DRUMMOND: AS MÁQUINAS DO FUNDO

BATEIA

Lavagem de ouro, c.1880. Minas Gerais. Marc Ferrez

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para Clarisse e Priscila, mineiras, amigas

NOVA(S) MINA(S)

no ribeirão
do barro
não a pepita
(ouro de mina)
mas o puro pó
da aluvião
que na bateia
se garimpa
e entre tanta
areia & poeira
a diamantina
gema
azulando
a pele
que contra si
negreja
sem mercúrio
algum
o olho claro
do grão bruxo
farmacêutico
alquimista
em forja e forno
malhando
o ferro vigante
da humanidade
em passe mágico
mudado
no cristal mais puro
(a máquina do mundo)
mistério tinindo
em suas esferas
o tomo de tudo:
força de Atlas
paciência
de monge
a suportar
por sobre
os ondes
de paletas
e músculos
(ossos e prumos)
o peso tangido
pela mera pluma
que em paradoxo
de faina e carícia
esmaga
o que tritura
e só assim encanta
aquilo que ao tocar
sublima
ou já por outra
atiça e aninha:
a cobra e a ave
o rio e o duto
ambos
conducentes
do panta rei
heraclítico
no estio-jorro
dos fluxos:
o sangue e a sanga
a pele e o fundo
sem nenhum
desdouro
à carcaça
ou adubo
do touro bravo
na reisada largado
em pleno entrudo
de quarto em quartzo
bufando
desorientado
por becos e tufos
ei-lo aqui, acolá
ou no alcance
que quiser
mentar o aboio
do supermetalúrgico
dessas glebas infindas
(mas limitadas)
e de um miraculoso
açúcar sem chumbo
com seus coronéis
ciscos e corolários
raros e/ou adjuntos
aos demais elementos
fundidos à potência
dos recentíssimos aços
em manejo e custo
de qualquer drama
reduzido a produto
drenado, saído
defraudado
em sacas e naus
de nossa(s)
nova(s) Mina(s)
que de Brasil
o inteiro globo
abastecem
e inundam
do requintado
ao rude-bruto
oriundos
da supérrima terra
desse opulento
homoculturas:
senhor & escravo
da crudelíssima
moenda extrativista
bem mal maquiada
por paetês
e purpurinas
da ora dita
economia criativa:
o melaço e o petróleo
a rês e a celulose
o porco e a soja
o titânio e o tório
o seixo e o sexo
a galinha e o tóxico
a pata e a pétala
o urânio e o nióbio
se deles: nosso
haja quinhão a todos
e não se contente
o rico em ser pobre
em especial
se ainda filho
(bastardo, plebeu
fidalgo, nobre
ou cativo:
mouro, mulato
malaio
negro, índio)
da talassocracia
portuguesa
de orbes e orientes
por rotas inteiras
de especiarias
toras e sedas
hoje à boca
de tardias gentes
agora falantes
(novidadeiras)
a respeito de afoitas
roubalizações
em mares e rios
há tanto singrados
por caravelas
pescarezas
(mexeriqueiras)
guardando lugares
a nossos comércios
e sábios:
o grosso, o granel
os cetáceos
por seus óleos
de mil arpéus
arpoados
à margem
de ilhas e costas
que germinem
escondam
e sustenham
(do áureo
ao canoro)
as bodas entre
o Ganges
e o Amazonas
na vascularização
reticular e oceânica
da terráquea crosta
em suas irrigações
e gangrenas
desde o século XV
perenes
na mistura e atrito
entre os sangues
as crenças
as profecias
os deuses
as ciências
estas últimas
atualmente dadas
a cínicos
revisionismos
como se o grânulo
de areia
na ampulheta
da revolução
copernicana
prevenisse
os marujos
da física quântica
acerca
desse cosmos
em anos-luz
perscrutado
quando faminta
de certa
espiritualidade
uma carne
tão cedo
se frustre
no cabo
tormentoso
da própria
finitude.

*

Marcus Fabiano Gonçalves,
dezembro de 2023

* * *

REVER E REAVER AS MÁQUINAS DO MUNDO

O poema A Máquina do Mundo, presente na obra Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade (1951), indiscutivelmente não se reporta ao fenômeno econômico da mineração, posto que, como é longamente sabido, estabelece uma belíssima intertextualidade de referência à instância 80 do Canto X de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões.

Em sua A Máquina do Mundo, o poeta mineiro trata, isso sim, das altas transcendências do mistério da vida. É essa máquina ptolomaica, antiga e relida como diagrama e metáfora tanto por medievais como renascentistas, em seus delicadíssimos globos cristalinos e concêntricos que figuraria o universo cósmico-quotidiano ao qual Drummond rende desabrida homenagem em seus versos de beleza mítica e assombrosa profundidade existencial. Logo, constitui caso abusivo daquilo que Umberto Eco chama de superinterpretação procurar em A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, alguma chave hermenêutica a partir da mineralogia, posto que inclusive quando evoca “o sono rancoroso dos minérios”, é simplesmente das raízes vegetais enterrando-se no solo de que o poeta de Itabira está a tratar, ou seja: dos mesmos elementais a que Camões outrora se referia. Sendo assim, a Máquina do Mundo que em Camões é um Deus cristão ao qual o engenho humano não se estende, em Drummond torna-se um mistério metafísico gratuito e repentino que se lhe oferta para ser logo adiante recusado: “essa total explicação da vida, / esse nexo primeiro e singular, / que nem concebes mais, pois tão esquivo / se revelou ante a pesquisa ardente / em que te consumiste… vê, contempla. / abre teu peito para agasalhá-lo.”. Outrossim, para além da superinterpretação textual sem supedâneo exegético crível, a abordagem que procura encontrar uma mineralogia drummondiana como medula espinhal de sua prolífera criação, e no episódio em tela, em A máquina do mundo, também incorre no casuísmo típico de uma reconstrução retrospectiva e artificiosa da autoria chamada “ilusão biográfica”, tal como bem a define Pierre Bourdieu em seus seminais trabalhos a respeito dos campos intelectual, editorial e especialmente estético, ao investigar as relações entre Sartre, Flaubert, Proust ou Sainte-Beuve e suas condições produtivas, compondo o panorama maior das condições de eclosão do romance dos séculos XVIII a XX. “Frequentemente os textos dizem mais do que o que seus autores pretendiam dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes gostariam que eles dissessem. (Umberto Eco, Os Limites da Interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 81). A superinterpretação é para Eco uma atuação adjudicante do hermeneuta abusado: um excesso de injeção intencional creditada à vontade do autor mas que teria origem no propósito de um intérprete desregrado, almejando, talvez a um alto custo, persuadir seu auditório leigo, semi-informado ou afetado por eventos alheios ao encadeamento originário do corpus textual sob análise. Eco procurava então corrigir equívocos pelos quais se sentia em parte responsável como semiólogo: ter chancelado, mesmo indiretamente, uma onda de excessos hermenêuticos pós-modernos, de viés irracionalizante, oriunda de noções mal manejadas dos estruturalistas, tais como a de “obra aberta” ou “morte do autor”, as quais teriam produzido circuitos apreciativos que se chocavam contra a materialidade explícita da letra dos documentos e suas tradições fixadas,  arrebatando leitores desprevenidos ante o tom novidadeiro de sua supostas “revelações”, as quais não passavam de descomedimentos indemonstráveis que chegavam a borrar patrimônios da cultura humana. Eco então busca reabilitar a interpretação correta e seus correlatos. Ele rechaça (1) a subjetividade da psicologia gnóstica (a síndrome do segredo na adivinhação de uma suposta “verdadeira” intenção criativa encoberta sob um véu críptico), (2) a análise que que extrai da ambiência pantanosa o fragmento de uma obra maior cujo lodaçal em derredor o próprio crítico encharcou para melhor funcionamento de seu dispositivo prestigitador, encorajando (3) homologações entre literalidades e contextos ulteriores que saturam páginas pregressas ao arrepio de boas análises, inclusive aquelas mais antigas e só mencionadas de modo ligeiro para dessa maneira supostamente com elas se “harmonizar”, mas pretendendo desde sempre acrescentar-lhes algum tópico supostamente inovador, inserindo-se assim sub-repticiamente em um cânone receptivo já estabilizado. Eco, por ser didático, não é menos drástico no aquilatamento do tamanho e da função do leito enciclopédico no qual se processa o fenômeno da superinterpretação em espectro epistemológico. Essa sua passagem é elucidativa em tal sentido: “Thomas Kuhn observa que, para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que as outras teorias da lista, mas não precisa necessariamente explicar todos os fatos de que trata. Acrescentarei, porém, que também não deve explicar menos que teorias anteriores.”. (Umberto Eco, Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 70, tradução MF). Há mais de 10 anos enfrentei, de início solitário e sob semblantes desconfiados, o problema da superinterpretação do suposto encontro da chave críptica para “uma leitura definitiva” do enigmático poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, de Stéphane Mallarmé (1897), divulgado por Quentin Meillassoux na sua obra Le Nombre et la sirène (Paris, Fayard, 2011). Qual não fora minha surpresa ao perceber que a tal chave de fato poderia mesmo existir, mas não implicava em absolutamente nada da exótica contagem de palavras brandida como ovo de Colombo pelo acadêmico francês. Aos interessados, deixo mais essa esgrima hermenêutica acerca de A abolição do acaso em Mallarmé.

Nem no inferno, nem no céu: a Máquina do mundo de Drummond é um poema de ocorrência pedestre, transcorrido em um cenário deveras singelo, embora as refrações alcançadas pela forma clássica eleita para enunciá-lo. Em síntese esse é o seu contexto ocorrencial: um homem (qualquer homem, mas no caso específico, o próprio poeta) segue por uma via pedregosa durante um cair de tarde passado entre montes escuros circundados pelo voo de pássaros negros, ao som dos próprios passos e de um sino rouco, quando, repentinamente, é abordado por um mistério e dádiva que lhe franqueia total acesso à explicação da vida, caso queira. Com a noite já fechada, ele “como se outro ser, não mais aquele / habitante de mim há tantos anos /  passasse a comandar minha vontade” já despojado de fé e acreditando que o tempo das altas indagações era passado, declina à oferta e prefere seguir seu curso, mas sem deixar de avaliar o que talvez perdia, “enquanto a máquina do mundo, repelida, / se foi miudamente recompondo.”. Aó reside o esplendor surpreendente do poema: o de quem, tendo acesso abrupto aos segredos da existência, resolve por ignorá-los, continuando seu itinerário sem contudo chegar ao menos a se arrepender. 

A obstaculizadora e modernista pedra do meio do caminho transmutou-se em resignação à perda e persistência pela estrada pedregosa. O dantesco nel mezzo del camin da Divina Comédia vira pretérito e percurso extenuantes para as retinas fatigadas: não se trata, pois, de qualquer recusa peremptória ou sequer teológica. É a pura experiência lentamente sedimentada que lhe (e)leva a certo grau prudencial de distância, inclusive do reconhecidamente mais sublime. A alusão literal à citação camoniana encrespa a agudeza barroca de extração ptolomaica-platônica-medieval. Curiosamente aí o seu índice de máxima riqueza não é, todavia, o ouro ou o diamante (e evidentemente jamais seria a hematita), mas sim um recurso aquático, coisa em princípio estranha para um mineiro distante do mar que não tivesse sofrido um processo completo de educação estético-sentimental para além de seus horizontes habituais: “olha, repara, ausculta: essa riqueza a / sobrante a toda pérola, essa ciência / sublime e formidável, mas hermética”. Mesmo sendo tão breve e delicado, note-se: a perfeita redondeza da pérola atrelada à guarda de seu fechamento é por certo uma das estocadas mais contundentes da orquestração maquinal de Drummond. Que artesão de imperadores ou reis alcançaria essa perfeição de bolas de cristal umas dentro de outras sem tomar por modelo ao menos a perfeição da pérola?

A última esfera de Dante – o infinito Empíreo – conglobaria o todo de tudo além das almas nobres, figurando a arquitetura celestial da apreensão divina e representando moralmente desde o inferno ao paraíso. Sabidamente essa intrincada arquitetura trata da recepção de O sonho de Cipião, presente em Da República, de Cícero, que acumularia sobre si desde a visão antiga até os substratos depois cristãos em seus contornos e detalhes de complexa ideação, constituindo patrimônio imagético, vale lembrar, carecedor de maquetes e inclusive de amplo acesso à transmissão de escritos ou desenhos. Ao tratar de O sonho de Cipião refiro-me aqui ao Somnium Scipionis Ciceronis ex sexto libro de republica, onde, no discurso sonhado por Cipião Africano, sua fala faz soar a música das esferas e procede à apologética da virtude cívica romano-aristotélica considerada a vanidade da glória humana face à multiplicidade dos modos de vida, preservando-se ainda a unidade maior de um só Deus tutelar. Em regra, essa passagem parcialmente preservada Da República de Cícero é acreditada como sem alterações e lida desde a versão de Ambrósio Teodósio Macróbio, nascido no ano 370 d.C.  Macróbio torna-se então a principal fonte transmissiva da ideia de máquina do mundo até o Renascimento. Passado o tema por Dante, no próprio Camões, aliás, nada disso representa qualquer novidade, constituindo-se antes o topoi macrobiano em lugar a ser frequentado pelo poeta que nele exercita seu estro. Em Os Lusíadas (1572), Vasco da Gama é conduzido a uma montanha pela deusa Tétis, a qual, entre as estâncias 80 e 82 do poema, exibe-lhe a soberana máquina do mundo como um globo flutuante e translúcido de onze esferas. Em lugar de glosá-las, melhor é transcrevê-las em sua redação elemental de terra, água, fogo e éter: “Vês aqui a grande Máquina do Mundo / etérea e elemental, que fabricada /assim foi do Saber, alto e profundo, / que é sem princípio e meta limitada. / Quem cerca em derredor este rotundo / globo e sua superfície tão limada, / é Deus: mas o que é Deus ninguém o entende, / que a tanto o engenho humano não se estende. // Este orbe que, primeiro, vai cercando / os outros mais pequenos que em si tem, / que está com luz tão clara radiando / que a vista cega e a mente vil também, / Empíreo se nomeia, onde logrando / puras almas estão daquele Bem / tamanho, que ele só se entende e alcança, / de quem não há no mundo semelhança. // Aqui, só verdadeiros, gloriosos / divos estão, porque eu, Saturno e Jano, / Júpiter, Juno, fomos fabulosos, / fingidos de mortal e cego engano. / Só para fazer versos deleitosos / servimos; e, se mais o trato humano / nos pode dar, é só que o nome nosso / nestas estrelas pôs o engenho vosso.”.

Pois bem: Drummond praticamente “nada” mais fez além de limpar as cumulativas incrustrações éticas e teológicas da máquina do mundo até reter dela somente sua estrutura basilar: a vida humana percorrendo seu caminho durante o qual é indagada (ou se indaga) pelo sentido da própria razão de existir e seus limites. No entanto, a maneira como procede a tal simplificação (diria até: redução fenomenológica, na acepção husserliana) aporta novíssimos dados, especificamente modernos, em um sentido filosófico que oscila entre o ceticismo e o solipsismo de uma mise-en-scène solitária flagrada na reflexividade de seu solilóquio. Para tal desiderato, Drummond procede à cautelosa eleição de uma díade verbal dominante: a escolha do subjuntivo (“e como eu palmilhasse”) destituído da frequente partícula pronominal “se” que o pode acompanhar, aliada ao futuro do pretérito (“avaliando o que perdera”). Na perspicácia de tal acabamento, absolutamente nada é casual ou opção despicienda que se possa reputar como de estilo: a condicionalidade suspensiva enfaticamente assim lograda torna na prática indecidível se a ocorrência do que é narrado em A máquina do mundo (1) efetivamente se dera como aparição fantástica, de modo ficcionalmente literário, por óbvio, ou, então, (2) se haveria ocorrido toda no plano da cogitação mental do poeta-personagem caminhante. Ambas as leituras me parecem igualmente aceitáveis. E o ardil em compô-las em simultânea orquestração é parte fatal do estratagema das ambiguidades e do Kairos do caminho: representação maior de destino, via, vereda, temporalidade especializada, escolha deliberada, transumância acrescida de estado consciente e até do passo a passo que de si invocam tanto os rigores do método cartesiano quanto a solução da dúvida do Cogito do mesmo Descartes: eu próprio, sede maior da minha certeza, posso, a partir de mim mesmo, inclusive renunciar à revelação maior – a de um deus além das essências e princípios (arché), um supergeômetra ou megamecânico na sua perfeição de relojoeiro constelar, talvez de Copérnico-Kepler, mas sem sombra de dúvidas distanciado de metafísicas essencialistas ou temores infernais. Os tercetos de reatulização drummondiana da deidade quinhentista d’Os Lusíadas, mesmo sendo esta insculpida entre o pagãos e cristianizados, não declina à abordagem do mistério, mesmo conduzindo-a a um oxímoro cético que, para sê-lo, haveria de ao menos ter pressuposto, em algum instante, a fé.

A ideia de máquina como engenho supõe haver partes, funções distribuídas e coordenadas, teleologia estabelecida, montagem ou desmontagem – e, por que não? – avarias e consertos. A ideia de máquina transmuta-se no aparelho que amplifica ou inclusive substitui o trabalho humano. Não é por motivo outro que a ingerência das forças sobrenaturais que providenciavam o desenlace em uma tragédia de difícil urdidura ficou conhecido, e comentado por Aristóteles em sua Poética, como “deus ex machina” (do grego: ἀπὸ μηχανῆς θεός, apò mēkhanḗs theós, o deus surgido da máquina), uma intervenção cênica inexplicável pelo curso natural da trama e que se reportava aos andaimes, cabos, correias e demais aparatos que fizessem aparecer e tornar dizível (λόγος ἀποφαντικός) uma divindade no palco em plena atuação teatral seguida por espectadores. Temos aí a máquina como veículo da ação divina ou mesmo a máquina como meio prático do efeito especial. A derivação daí do conceito sinérgico de sistema torna-se praticamente inevitável. Como também a busca pelo motor imoto da causa primeira passa a ser uma obsessão a permear as conceitualizações mais primitivas de trabalho e energia. O fascínio do homem pelos amplos poderes do mecânico foi capaz de o supor como libertável do suor de seu próprio trabalho sem incorrer na escravidão, levando-o ao autômato, ao robô Carlos Drummond de Androide ou ao replicante da engenharia genética na ficção científica. Mas de Macróbio ao robótico, outro ponto ficou por ser abordado acerca do desaparecimento cênico-poético da máquina do mundo. Drummond afirma que, após rechaçada (“repelida”), ela se foi “miudamente recompondo”. Que se tenha recomposto, e miudamente, supõe, por rigor e cogência, que antes integralmente se compusesse e/ou mantivesse sua compostura. Deriva então dessa exegese (1) que a apresentação da máquina do mundo ao viandante ocorreu enquanto de-composição analítica em suas partes constituintes; (2) que ela se apresentou enquanto sistema móvel de dobraduras por instantes abertas e depois recolhidas (tal como as alegadas “flores reticentes”, biônicas, ou como micromecanismos de relógios, realejos e joalherias); ou (3) ainda que ela, após recusada, sofrera qualquer sorte de abalo psicológico ou moral à sua própria grandeza. À primeira interpretação chamá-la-ei de (1A) a máquina do mundo como superfenômeno físico-químico, à segunda, de (2B) superfenômeno biomecânico, e à última, (3C) de a máquina do mundo como trauma da divindade ofendida. Nos versos finais de A Máquina do Mundo, o poeta não deixa entrever qual seria sua predileção hermenêutica sem tampouco mantê-la hermética: acaba jamais estabelecendo de modo concludente quais as naturezas ontológicas da máquina e tampouco do mundo. Por certo Drummond joga aí com caminhos e camadas alegóricas em uma (con)fusão arrematada por estrondosa beleza e ambicioso teor vivencial. Logo, termina por escrever o poema como quem erige um monumento ao caminho. E para uma boa abordagem do tema cabe ressaltar que a precursora articulação das ideias de fadiga, desalento e continuidade pela via percorrida já constam integralmente nos versos de Nel mezzo del camin, de Olavo Bilac, publicado em suas Sarças de Fogo no ano de 1888.

Em Confissões de um Itabirano, incluído em Sentimento do Mundo, Drummond declara em 1940 que de se sua cidade trazia, entre outras prendas a serem ofertadas, “esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil”. A melancolia funde-se em tal passagem a certo orgulho telúrico. Em lugar de diluir tais sentimentos na platitude uma atemporalidade assíncrona, convém antes bem situá-los nos períodos anteriores à Segunda Guerra mundial e ao devorador estabelecimento da Companhia Vale do Rio Doce em sua partilha britânico-norte-americana, sucessora da Itabira Iron Company. Isso porque, anos depois, seguramente seu agudo atilamento paisagístico e atividade memorial jamais deixariam passar in albis a intervenção mineradora de gigantesca escala ocorrida no quadrilátero ferrífero mineiro. Em A Montanha Pulverizada, em Boitempo II (ou seja: três décadas mais tarde, no ano de 1973), em plena ditadura militar, na serra dita de “seus ancestrais”, “tomada aos índios”, e cuja riqueza máxima seria a própria vista, ele assombra-se com o desaparecimento do Pico do Cauê (logo em seguida mudado em cratera de um “sino reverso”), triturado e transportado por centenas de incessantes vagões e poderosas trações a diesel a legar apenas um fino pó de ferro à cidade. O tema do frenético escoamento ferroviário do minério bruto é de novo recuperado em O maior trem do mundo, publicado no Cometa Itabirano, mais de uma década depois, em 1984, já no quadro de uma virada de consciência crítica mundial sobre a temática ambientalista e, no caso concreto brasileiro, somada às consequências dos iníquos tratados com o governo estado-unidense (os Acordos de Washington) no que tangiam a pregressos assuntos ditos de interesse de ambas as nações, em tratativas das quais a mineração seria um dos elementos estratégicos envolvidos. Aqui transcrevo a versão facsimilar do poema publicado pela primeira vez no Cometa Itabirano de 1984 e somente há pouco arrolado na obra Viola de bolso mais uma vez encordoada, contendo 25 inéditos do autor, publicada pela José Olympio no ano de 2023.

Na Era Vargas, o Programa Vale do Rio Doce, de 1942, almejava como prioridade ideais sanitários pós-higienistas e a rápida alocação de potente infraestrutura. Visava sobretudo o estabelecimento de uma rede hospitalar e de postos de saúde voltados à contenção da malária e da febre amarela, moléstias dos Trópicos potencialmente letais cujo terror ainda pairava sobre quaisquer obras de interiorização a partir das tristíssimas memórias da Ferrovia do Diabo, no trecho Madeira-Mamoré, entre Porto Velho e Guajara Mirim, o caminho de ferro estalecido em Rondônia para escoamento de látex colhido nas “ruas” dos seringais nativos desde o final do século XIX. Essa empreitada fora iniciada ainda no Império. O Decreto de sua autorização é da lavra de Dom Pedro II e data de 1870. Mas na prática a ferrovia apenas teve seus duríssimos limites de engenharia vencidos por Percival Farquhar no século XX. Com a ajuda de Oswaldo Cruz e dos melhores técnicos da época, ele logrou vencer um curso fluvial acidentado e mediante ampla mortandade de trabalhadores em estado insalubre, inaugurou a ferrovia Madeira-Mamoré em 1912. Dita uma lenda do suplício de tal caminho férreo e sobreaquático, ousando cortar em plena selva, que para cada dormente avançado, sob ele restava o cadáver de um homem abatido pelos perigos da floresta amazônica, os quais incluíam, além de tudo, a eletrificação noturna de trilhos e demais ferramentas para se evitar o furto por indígenas da região. O mesmo Farquhar, engenheiro norte-americano da República Velha, diretamente inspirado pelo empreendedorismo petrolífero Rockfeller, renunciou em 1916 à presidência da Brazil Railway. Em 1919, com Epitácio Pessoa na Presidência do Brasil, seu lóbi facilmente obtivera contrato para explorar as reservas de ferro nacionais com sua nova empresa (não sem antes controlar a geração hidrelétrica do Brasil): a Itabira Iron Ore Company. O projeto de Farquhar fora o mais autêntico núcleo planificador da Companhia Vale do Rio Doce: abarcava um completo aparato de processamento siderúrgico do aço (sempre a concorrer com pequenas metalúrgicas locais) e o escoamento ferroviário-portuário do amplo volume de mineração excedente com olhos fixos no crescimento das demandas do mercado externo. O que mais aí se possa dizer respeita à história econômica e sua vasta bibliografia especializada. Poderia acrescentar que eu mesmo fiz sondagens e entrevistas em Porto Velho, entre 1999 e 2017, sobre os ciclos da borracha e em tais ocasiões encontrei-me absolutamente espantado com tais temas sensíveis de baixa divulgação nacional e ainda presentes na memória de fontes orais vivíssimas, testemunhas de milhares de vidas embrenhadas na mata em busca do látex natural, nosso ouro branco, antes de os pneus e câmaras infláveis serem vulcanizados com borracha sintética. Cheguei a entrevistar, com boinas rubras e em trajes militares, alguns nonagenários veteranos da Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de um trio de cavalheiros denominados Soldados da Boarracha, inexplicavelmente relegados ao esquecimento de grande parte do País. Tais fatos socioeconômicos da nossa incalculada riqueza de recursos naturais gerariam desde o frisson da Fordlândia (no estado do Pará, entre 1927 e 1945) até Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda, no Rio de Janeiro, exigida pelo Brasil na Era Vargas, durante o Esforço de Guerra com o qual também contribuímos após o Império do Japão tomar os seringais da costa asiática na Malásia para onde haviam sido, séculos antes, ilegalmente traficadas e cultivadas pelos ingleses as sementes de nossas seringueiras de seiva única no mundo inteiro (dir-se-ia hoje: em ato de biopirataria). Durante a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente 55.000 retirantes nordestinos foram então reintroduzidos sob regime análogo ao da escravidão para recompor peças indispensáveis à indústria bélica norte-americana à beira da paralisia: vedantes de para-brisas e escotilhas, solados de botas e coturnos, capas de chuva, juntas, anilhas, calços, amortecedores, dutos de soro, luvas cirúrgicas, boias, máscaras antigás e de voo, dutos de respiração, frisos impermeabilizantes, coletes salva-vidas de pilotos, pneumáticos infláveis de automóveis, aviões, bicicletas e uma infinidade de objetos de borracha necessários ao perfeito funcionamento de avançados maquinários que, avistados ao longe, exibem a aparência exterior de compactos colossos de apenas puro aço. O Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia alistaria e recrutaria militarmente 55.000 nordestinos assolados pela seca, dentre os quais mais de 25.000 almas sucumbiriam à exaustão e aos perigos de um bioma inóspito. Para se traçar ligeiro paralelo, é suficiente recordar que, durante o Conflito Mundial, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) era composta de 25.000 homens, sofrendo 457 baixas no teatro de operações militares. Os heróis de nosso segundo ciclo da borracha são apenas um exemplo a ser considerado no quadro histórico composto pelas vidas que se encontram entre a memória e o material, registre-se de passagem. Porém, repisar tais temas seria aqui adotar um ramal que afastaria esse modesto ensaio de seu núcleo central: demonstrar que A máquina do mundo drummondiana, poema cujo bosquejo remete a 1949, não se relaciona poeticamente com os episódios da mineração ou da mineralogia, a partir de argumentos especificamente interpretativos, literais, literários e histórico-filológicos. Para não lê-lo ao arrepio de sua literalidade, basta então mencionar que a Ferrovia do Diabo, destinada ao escoamento do látex, como paradigma republicano da confrontação entre o extrativismo primário e a soberania tecnológica movimentava à época comodities em bolsas de valores, a saída da Bolívia para o Oceano Pacífico, a resolução diplomática da questão territorial do Acre brasileiro, a perigosa engenharia de pontes estendidas sobre cursos d’água topograficamente desnivelados, a importação de possantes locomotivas a vapor, a migração mundial de mãos-de-obra longínquas (de famílias gregas a chinesas) para nosso território amazônico, a comunicação propiciada pelos postes telegráficos encravados por Rondon e uma matriz econômica degradante. A mesma matriz que agora prossegue, por exemplo, com a concentração do nióbio nas mãos da família Moreira Salles, detentora de 80% de suas reservas pelo planeta, situadas em sua maior parte no Brasil.  

Como se percebe sem maiores circunlóquios, a mineração torna-se aí a peça de um programa geopolítico planetário e estratégico do qual o Lebenswelt de qualquer autor ou intelectual atento à realidade nacional, poeta ou não, reverte-se em apenas um elemento a mais. O aludido Programa Vale do Rio Doce, meticulosamente planejado, visava então dissipar o fantasma da Ferrovia do Diabo: procurava fornecer suporte logístico à instalação segura da Companhia Vale do Rio Doce, bem como à reativação e reforço das bitolas dos trilhos da via férrea Minas Gerais-Espírito Santo (Belo Horizonte-Vitória). Ao custo da barata extração e exportação de minerais, ao governo brasileiro pós-revolucionário interessava interiorizar o desenvolvimento ao estabelecer estruturas de base e condições sanitárias em uma região até então deslocada da economia e do Estado Nacional em vias de modernização. Portanto, constava das atribuições do primeiro Programa do Rio Doce ações como assistência médico-sanitária aos trabalhadores, instalação de uma rede de postos de atendimento de saúde nas cidades e vilarejos adjacenes, implantação de escolas de enfermagem (na impossibilidade das de medicina), centros hospitalares de maior porte, unidades profissionalizantes de nível médio e, evidentemente, a execução do tracejo de rotas percorríveis por diversos modais – do rodoviário ao portuário. Aqui abro um parêntese intempestivo: a alta aspiração desse programa deveria ruborizar administra(i)ções de todas as esferas da República, sobretudo face à sobra de recursos financeiros malversados e à abundância de matérias primas e meios tecnológicos poderosíssimos agora disponíveis. À época de Vargas, a curto prazo o preço a ser pago era o fornecimento da base aérea de Natal como cabeça de ponte aos Aliados, o famoso Trampolim da Vitória para o Europa. Além disso, em termos culturais, a política de “boa vizinhança” custou-nos uma americanização cultural massiva, que, se afastava quaisquer pendores pelo eixo nazifascista, ao mesmo instante impunha uma nova elite, inclusive universitária (e depois golpista ou alienada) alinhada pelos interesses norte-americanos mais subservientes ao imperialismo, tais como a isenção tributária e a dispensa do pagamento de royalties por nossos minérios.

Programa do Rio Doce, com indicação das atividades médicas e trajetos.
Dossiê BR/RJCOC SP-01-OF-116. DAD/COC/Fiocruz.

Quando o trabalhismo se tornava uma espécie híbrida de socialdemocracia autoritária, os ganhos em industrialização e geração de empregos urbanos incrementadores de um proletariado incipiente calava vozes dissonantes e deleitava os ímpetos sindicalizantes. A instalação definitiva da grande siderurgia punha o País em outro patamar de dignidade mercantil. Rejeitos de minérios em barragens, contaminações freáticas e apagamentos paisagísticos seriam temas renitentes e de baixa ressonância, mesmo porque se passavam (como ainda em Carajás ou nas minas de nióbio se passam) longe e ao largo dos olhares criticamente mais credenciados, sendo sempre mais prático aos poderosos o fácil e barato aliciamento cooptador de escritores, artistas e formadores de opinião para a devida maquiagem relativizante de realidades pérfidas, inclusive com tardio, vão e desviante denuncismo, isso quando eles já não têm aperfeiçoadas suas próprias máquinas de greenwashing, greenlighting e demais lavanderias do marketing cultural, via de regra legalmente financiadas por instrumentos de renúncia tributária, com apartados contábeis de seus (nossos) impostos de renda revertidos para si próprios atrelados a uma seleta destinação gotejante distribuída para clientes “de mérito”, estes, claro, sempre acima de qualquer suspeita. Ou interesse. Dentre estes, e a bem da verdade, nunca se contou a voz do funcionário público Carlos Drummond de Andrade, cujo passado com claras inclinações socialistas o tinham aproximado inclusive do Partido Comunista. Em depoimento televisionado em 1982 à jornalista Leda Nagle (lamentando “bombas nucleares e outras menores” e declarando praticar uma “poesia de depuração interna”) Drummond afirma que se serviu da tribuna jornalística para “dar suas pauladas” na Companhia Vale do Rio Doce. Pauladas como as dos versos abaixo legíveis, datados de 12 de outubro de 1955, veiculados no Correio da Manhã, órgão de ampla circulação nacional e sistemática oposição política aos governos. Entre outras crônicas, se lê essa prévia do sintético e até pouco desconhecido Lira itabirana, a seguir analisado.  Posicionando-se em prol de direitos dos funcionários e a favor de um maior ganho do erário local pela atividade mineradora, observe-se, en passant, como e o quanto tais versos de circunstância, insinuantes até mesmo de iminente violência surgida do encontro entre pedras e braços, são ameaçantes em seu pesado tom crônico e irônico. Postos na pena de um certo Nico Zuzuna endereçando-se a “C.D.A.” na redação do jornal, eles denunciam a “comédia embromatória” da Vale do Rio Doce e destoam drasticamente do propósito grandíloquo e universalista de A máquina do mundo. Ao menos para mim – e considerada a distância de no mínimo 35 anos entre esses dois poemas – essa é uma prova indiscutível de que nosso poeta maior alcançava, com seus modestos “poeminhas e croniquinhas”, as mais variadas amplitudes de assuntos e dicções. À época do concernente governo militar, o presidente da Companhia Vale do Rio Doce era o engenheiro Eliezer Batista da Silva, homem de confiança do General Figueiredo e pai do comerciante de ouro e pedras preciosas e futuro empresário do petróleo Eike Fuhrken Batista da Silva. Abaixo a transcrição do poema-crônica de Drummond divulgado no mencionado periódico carioca que contava com os mais ilustres escritores de sua época:

CORREIO MUNICIPAL

De nossa velha Itabira, / meu prezado C.D.A., / escreve-lhe este caipira/ por um “causo” urgente. Tá? // Sucede que há bem treze anos, / oito meses e uns trocados, os pobres itabiranos, mais fazem, mais são furtados. // A nossa mina de ferro, que a todo mundo fascina, / tornou-se (e sei que não erro), / pra nós, o conto da mina. // Vai-se a cova aprofundando / pelas entranhas do vale, / e um dinheiral formidando, / como outro não há que o iguale, // dessas cavernas se escoa e passa pela cidade, / passa de longe… Essa é boa! / Aceitar isso quem há de? // Não chega à tesouraria / da faminta Prefeitura, / pois vai reto à Companhia / que o povo não mais atura. // Do Rio Doce se chama, / de pranto amargo ela é, / refletindo um panorama / de onde desertou a fé. // Promete mundos e fundos, / piscina, cinemascópio,  avião cada dois segundos, / mas promessa aqui é ópio.// De positivo, batata, a injusta empresa nos lega / poeira de ferro, sucata / e o diabo (que a carrega). // O doutor Café, doído /  de tanta desolação, / dá como bem entendido /  que assim não pode ser não. // Mas a bichinha remancha, / diz que vai, não vai; ou vai? / E assim driblando na cancha, / se ri da gente e seu ai.// Ante o clamor que não cessa, / depois de fechar-se em copas, / o professor Chico Lessa/  divaga pelas Europas. // Diz-que espera a lua nova, / ou por outra, o Juscelino, /  e então teremos a prova / de quem é o mais ladino. // Ora, não creio: esta terra, / em sua sorte mofina, / nas feridas da serra, / lembra muito Diamantina. // Dos grão-mogóis do Tijuco, / hoje que resta? lembrança. / (A exploração leva o suco, /  deixa a fome como herança.) // Um presidente que sabe / as lições de nossa história, / é de esperar que ele acabe / com a comédia embromatória. // Se não acabar… paciência. /  No vale já se perscruta / uma sagrada violência / de povo inclinado à luta. // As pedras juntam-se aos braços… // Que o desespero nos una! / E é só. Duzentos abraços / do velho Nico Zuzuna.”

Durante a presente pesquisa, fui conduzido ao site de uma revista de moradores de Itabira (viladeutopia.com.br), que comigo partilhou uma descoberta no mínimo sinistra. Dou-lhes diretamente a palavra pelo exemplar levantamento realizado: “[…] por um achado do advogado Gilberto Fontes, nos escaninhos da Câmara Municipal, descobre-se que Itabira vendeu também à Vale o minério de ferro (hematita) que calçava as ruas do centro histórico itabirano. Com a venda, a Prefeitura saldou dívida que o município tinha com a então estatal.” A autorização legislativa para a venda do calçamento de ferro ocorreu com a aprovação da Lei Municipal nº 284/59, sancionada pelo então prefeito Daniel de Grisolia em 10 de junho de 1959. Em outras palavras, até a “estrada de minas, pedregosa” de A máquina do mundo pode ter sido substituída pelo piche de um recapeamento asfáltico, caso se queira forçar uma interpretação assíncrona do poema. Vejamos então como se aparentava essa paisagem colonial de Itabira que foi por certo parte da atmosfera cênica da infância de Drummond antes dessa pilhagem apresentada como ápice da modernização.

O contraste se faz mais do que oportuno, haja vista que agora confusos ativismos climáticos, dietéticos e identitários somam-se a discutíveis créditos de carbono para que herdeiros concentrem rendas em um âmbito mundial crescente e sob uma nuvem de distrações propositalmente espargida sobre autores cuja voz ressoa um grande temor à tomada de posições. Antes de tal fenômeno, entretanto, a Usina Presidente Vargas, da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, em Volta Redonda, fora estabelecida com fundos norte-americanos provenientes do Export-Import Bank of the United States (EXIMBANK). Ou seja: dinheiro obtido diretamente do governo norte-americano.  A promessa brasileira também envolvia dar suporte aos aliados caso suas produções de blindados, encouraçados e submarinos fraquejasse. Mas as principais minas de ferro da CSN são até hoje as de Congonhas e Arcos, em Minas Gerais. Inaugurada por Eurico Gaspar Dutra em 1946, a CSN é até a atualidade considerada uma das maiores siderúrgicas do planeta. Sua produção inicial principiou com lingotes de ferro gusa, isto é, com aço produtor de grande quantidade de escória e sem laminação.  Após anos de êxito econômico, a CSN passou a ser mirada pela privatização do Plano Nacional de Desestatização do governo Fernando Collor de Mello, concluindo-se sua passagem a mãos particulares sob a Presidência do mineiro de Juiz de Fora Itamar Franco, em 1993, quando foi arrematada, em estado lucrativo, pelos grupos Bradesco, Bamerindus e Vicunha.

A Rua dos Operários em Itabira perdeu as calçadas de minério de ferro.

Contudo, a questão da mineração em Drummond traz ainda outras nuances a respeito das quais posso me manifestar quiçá com alguma correção. Em minhas trajetórias poético-ensaísticas e de pesquisador, as quais se (con)fundem em algumas obras, lidei com a matéria desde o começo do século XXI. Em 2001, ao frequentar grupos de arqueólogos e paleoantropólogos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, segui de perto as datações de sítios que permitiram a confirmação da hoje chamada “fundição autônoma do ferro”, ocorrida na África Negra em enormes fornos metalúrgicos. Em 2015, publiquei, com o poema Kpinga, um longo ensaio intitulado Antropologia Poética do Ferro a esse respeito, recordando lá, explicitamente, a obra de Wilhelm Ludwig von Eschwege, o Barão de Eschwege, reputado geólogo germânico levado a Portugal por intermédio de José Bonifácio e trazido ao Brasil pela corte de Dom João VI a fim de apurar nossos potenciais mineralógicos e siderúrgicos, exatamente também na cidade onde seria fixada, anos depois, a Companhia Vale do Rio Doce. Friso: absolutamente nada disso é abordado por Drummond em A Máquina do Mundo, haja vista que o autor lá adota rebuscada dicção a respeito dos arcanos da trajetória humana em elevado tom antimetafísico. Admirado por Goethe, Marx e pelo próprio naturalista von Humboldt, von Eschwege chegou a elencar os primeiros cativos negros que teriam fundido o ferro inauguralmente no Brasil, desfazendo o mito de que os escravizados (do crioulo ao boçal) fossem ignorantes na matéria e na lida dos metais, tema por mim igualmente abordado no mesmo ensaio de 2015, trazendo referência à obra Pluto Brasiliensis, do mesmo Barão, publicada a respeito de nossas situações geológicas e estratográficas em 1833 na Alemanha e só mais de 100 anos depois vertida ao Português. Desse modo, convém impugnar qualquer interpretação inflacionária que através de ilações insinuantes ou generalizações falsamente panorâmicas se procure fazer sobre A Máquina do Mundo de Drummond, poema de extração camoniana desde a primeva eleição de seus decassílabos. Coisa nenhuma há ali de algum fragmento ao menos obliquamente referido à prática da mineração. Não. E ora pois: nada mais anacrônico e forçado por tristes circunstâncias, sobretudo se considerada a extensão temática da obra completa do autor (desde sua abordagem da família mineira ao seu lirismo de vanguarda) e o dado, absolutamente indiscutível, de que Drummond integrara o governo de Getúlio Vargas, o responsável direto por implementar no Brasil, a Companhia Siderúrgica Nacional – CSN (friso: na cidade de Volta Redonda, no Rio de Janeiro) como sucessora industrial da Real Fábrica de Ferro Ypanema (1810-1926), instituição essa esquecida ou minorada pelas abordagens que pretendam difundir esse interpretacionismo itarbirano ad hoc, um passado ausente até mesmo da própria opera drummondiana, demonstrando de maneira cabal que a metalurgia é-lhe tema esparso, ou, em outra perspectiva, a presença do ferro em tal poeta melhor explicar-se-ia por sua formação acadêmica, mencionada em Drummond, Farmacêutico (2012) na passagem “o velho tônico de combate à anemia / o ferro do sangue / o mesmo da mina / sabendo à bilis negra da melancolia”, fato bioquímico que obviamente deveria lhe ser trivial, para além da presença ostensiva de tal minério pelas ruas da urbe infantil atravessada por montarias de cascos ferrados a soar contra ruas e calçadas. Aqui outra rápida digressão se impõe. A plangência sônica dos bronzes (metonímia do próprio sino litúrgico católico) remete a uma complexa arte de sinais comunitários aperfeiçoada desde a Antiguidade, assim como a da primeira canhonearia surgida após o domínio da pólvora para fins militares. E aqui o bronze não pode ser jamais confundido com o ferro. O bronze não existe como um elemento químico puro, elencado na Tabela Periódica: constitui-se de uma liga de cobre e estanho, às vezes acrescido de zinco e outros metais de mais facilitada fundição e manejo plástico do que o ferro, sendo inclusive bem menos suscetível aos temíveis efeitos da corrosão em um universo ainda desconhecedor do aço inoxidável e das levezas incorruptíveis do alumínio. O bronze campanil, isto é, o bronze empregado na fundição dos sinos, é uma liga geralmente composta de 78% de cobre e 22% de estanho (podendo aí ser dosadas também algumas pequenas porcentagens de chumbo e níquel, obtendo-se assim diretas consequências mecânicas de resistência e versatilidades de timbres). Aliás, a chamada “voz dos bronzes”, saída dos sinos das cidades coloniais de Minas Gerais, seus ritmos, toques, repiques e dobras, foi tombada como Patrimônio Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no ano de 2009, graças a uma belíssima iniciativa da comunidade de São João del-Rei. Os seus significados e parlendas alcançam até registros onomatopaicos segundo os ouvidos mais treinados. E envolvem, entre outros, alguns toques conhecidos, dentre os quais transcrevo diretamente do sítio do IPHAN os seguintes: Ângelus, A Senhora é Morta, Toque de Exéquias, Toque de Cinzas, Toque de Finados, Toque de Passos, Toque de Treva, Glória de Quinta-feira Santa, Toque da Ressurreição, Toques de Te Deuns, Toque das Rasouras e Procissões, Toques de Incêndio, Toques de Agonia, Toques Fúnebres, Toques Festivos, Toque de Parto, Toque chamada de sineiros, Toque chamada de sacristão, Toque de Posse de irmandade, Toque de Almas, Toque de Missas, Toque de Natal, Toque de Ano Novo, Toque das Chagas ou Morte do Senhor.

A genealogia do transporte desde a Europa dos pesadíssimos sinos de bronze – e não de ferro – para as Américas, bem como suas posteriores fundições locais por leigos e devotos, constituem objetos de apiração por si já de valor intrínseco inegável, pois versam sobre uma cultura acústica, rítmica, melódica e harmônica memorial e de quase nenhuma documentação, mobilizando a transmissão de códigos sonoros tampouco redutíveis à oralidade de qualquer vernáculo, pois inclusive catequistas e militares das primeiras expedições ao Novo Mundo utilizavam-se de sinetes para ora encantar, ora espantar indígenas autóctones de variadas etnias. De momento, ainda conviria relembrar que “[…] à época colonial, quaisquer atividades industriais eram proibidas, especialmente, as relacionadas à fundição de materiais auríferos passíveis de serem contrabandeados. Quando havia alguma demanda, no caso motivada geralmente por necessidades de defesa — como a fabricação de canhões —, a Coroa Portuguesa controlava essas atividades de perto. Não foi outro o caso da metalurgia que se desenvolveu no Morro de Araçoyaba, atual município de Iperó, na região de Sorocaba, interior de São Paulo. A historiografia que trata do tema afirma que o português Afonso Sardinha descobriu minério de ferro na região e que, com a devida autorização da Coroa Portuguesa, sempre que necessário, fazia funcionar o que viria a ser conhecida como a primeira metalurgia da América portuguesa no século XVI. Há documentos que comprovam que o então governador das Minas das Capitanias do Sul, Francisco de Souza, encaminhou Afonso Sardinha e seu filho para proceder à análise do minério encontrado na região. Cerca de 200 anos mais tarde, em 1810, essa metalurgia passa a ser a Real Fábrica de Ferro de Ypanema, controlada pelo Governo português recém instalado na América. A data mais antiga que se tem registro da fundição de sinos é a do ano de 1589: o sino foi confeccionado por essa metalúrgica na região de Sorocaba. Também há notícias de um fundidor chamado Francisco Bernardes de Souza, responsável pela fundição dos sinos das Igrejas do Carmo e de São Francisco no início do século XIX em São João del-Rei.“(in: O toque dos sinos em Minas Gerais, tendo como referência São João del-Rei e as cidades de Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes. Dossiê do IPHAN, 2009). Quanto ao tema específico da marcação cronológica no tempo ibérico colonial, evidentemente despojado de relógios mecânicos de alta precisão, acumulam-se incontáveis análises de escol a tal respeito, tanto no que se refere aos períodos do dia quanto às datas dos calendários religioso e civil que anunciavam e ainda anunciam. A cultura de campanários e carrilhões percutidos por badalos, paus ou martelos é nada menos do que milenar. De outro lado, os sinos católicos exigem até hoje rigorosos batismo e consagração desde o planejamento de suas manufaturas, atos orientados por protocolos romanos de alta especificidade litúrgica: rezas, emenações de turíbulos, incensos adicionados às suas fundições, gravações de textos e signos em seus corpos e atenção a uma semiologia telúrica ou trascendente na determinação mesma do seu nome. O próprio Drummond sem nenhuma novidade ou cerimônia fixa tal memória incontestável no poema Sino Elias, “nome de profeta” que transmite “as grandes falas de Deus” (Boitempo). O sino Elias está presente em uma das torres da Matriz do Rosário, em Itabira. Também chamado sino do Santíssimo Sacramento, o potente Elias situava-se defronte da casa da infância do autor, com o Pico do Cauê ao fundo. Ulteriormente essa mesma torre fora posta abaixo, ano de 1970, após infiltrações e graves desmoronamentos que comprometeram a estrutura que o erguia altissonante. Jornais e revistas da época registraram a ampla mistificação supersticiosa que tomara conta do fenômeno da ruína da Catedral e do consequente calar de seu mais estimado sino, fatos estes causadores de imensa consternação e presságios na sociedade de Itabira. A Sé da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Itabira tornou-se uma paróquia desmembrada de Santa Bárbara em 1825, mediante alvará imperial, quando então fora bispo da cidade de Mariana Dom Frei José da Santíssima Trindade. Essa mesma matriz fora concluída em 1848, sendo então seu vigário o cônego José Felicíssimo, vale dizer: praticamente um século antes da exploração ferrífera de Itabira lá já estavam os seus sinos. Após a criação circunscricional da diocese de Itabira-Coronel Fabriciano, em 1965, o Papa Paulo VI, por uma bula específica daquele mesmo ano elevaria a Matriz de Nossa Senhora do Rosário à condição de Catedral. Em recente contato com essa paróquia itabirana, agora restaurada e fortificada, foi-me garantido que seus sinos de bronze encontram-se em seus devidos lugares, sendo, no entanto, adotada atualmente a gravação eletrônica amplificada por megafones (“sinos digitais”) nos seus toques quotidiados. Ademais, é impossível não recordar a possível referência de A máquina do mundo ao poema de Fernando Pessoa, publicado na revista Renascença, de Lisboa, em 1924: “Ó sino da minha aldeia. / Dolente na tarde calma, / Cada tua badalada / Soa dentro da minha alma. […]”.

Torres da Catedral de Itabira e o sino Elias. O Cruzeiro, novembro de 1970.

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Com efeito, no que tange à atividade mineradora, uma honrosa exceção à generalidade férrea da poética de Drummond deve ser feita pelo poema, esse sim fulcral, Lira Itabirana, até há pouco desconhecido: uma diatribe sem rodeios contra a atuação destrutiva da Companhia Vale do Rio Doce, então uma empresa estatal amplamente voltada ao comércio internacional. Após o desastre da barragem da Vale/Samarco, ocorrido na cidade de Mariana em novembro de 2015, no estado de Minas Gerais, por uma série de investigações, localizei aquele que talvez seja o texto mais explicitamente dedicado por Drummond ao drama da mineração: Lira Itabirana, o qual transcrevo abaixo. Emocionado, publiquei-o imediatamente nas redes digitais e uma colunista social o fez chegar à grande mídia e mesmo à leitura ao vivo pela jornalista Sandra Annenberg no telejornal Hoje, em cadeia nacional. Daí em diante, lido, dito ou encaminhado como mensagem de texto ou fotografia, o pequeno poema adquiriu a cifra de dezenas de milhões de admiradores indignados. Como se nota, trata-se de um poema modesto, de escassas estrofes, mas que explicitamente encara a mineração, nomeando em síntese a responsabilidade da empresa Vale do Rio Doce por seus desvios de conduta. Uma obra praticamente esquecida encontrava enfim seu máximo momento e surpreendentes auditório e público leitor. Foi-lhe por muitos atribuído certo tom profético, tamanho o ensejo dado entre sua acurácia e a momentosidade da divulgação. Como seus versos não constavam na Obra Completa de Drummond, cedo difundiram-se rumores de que seria um texto apócrifo, redigido e disseminado por mim. A Revista Modo de Usar & Co. então gentilmente convidou-me a escrever sobre essa preciosa descoberta em um breve artigo no qual estabeleço as fontes da Lira Itabirana e chego a trazer o poema em versão datiloescrita e assinada de próprio punho por um certo “Drummond, o Velho Itabirano”.

LIRA ITABIRANA

I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

[Cometa Itabirano, 1983]

drummond 2

À época, dias depois do desastre em Minas, publiquei também o poema A Pompeia do Paraopeba na rede social Facebook, transcrevendo-o depois aqui nesse mesmo blogue para meus parcos leitores. Qualquer dúvida – e não por isso – fora então dissipada: Lira Itabirana era exatamente um poema decisivo de Drummond a respeito da mineração no qual efetivamente criticava a devastação socioambiental e a injustiça causada pela matriz exportadora que chegara a erodir a visualidade paisagística do Pico do Cauê, formação rochosa a figurar na própria bandeira de seu município natal, atualmente chamada de Buraco do Cauê. A longa saga de Itabira é fartamente registrada pela crônica colonial e ótimos historiadores especializados. As reservas férreas de Itabira constituem todavia fenômeno relativamente tardio dos séculos XIX e XX. Bem antes dessa sua frenética exploração, Itabira (do tupi: ita, “pedra”, acrescida de byra, “que brilha”, portanto: talvez o valioso metal dourado ou o diamante, mas por certo não o ferro, que é fosco) torna-se polo atrativo graças ao ouro nela descoberto em fins do século XVII pelos irmãos paulistas Francisco e Salvador Faria de Albernaz. Um povoado depois consagrado a Sant’Ana do Rosário lá então se estabelecera a partir de 1698, sendo reconhecido como tal em 1720. Dele se emancipariam ulteriormente Itabira do Mato Dentro e antes mesmo Ferros, em 1838 (Sant’Ana dos Ferros) – ambos lugares integrantes do chamado quadrilátero ferrífero de Minas Gerais, superado em volume de extração bruta pela Serra dos Carajás, no estado do Pará, na Amazônia Legal Brasileira.

Para minha surpresa, e mesmo após abruptamente “saído” das redes sociais, uma empolgada pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Ana Paula Delage, localizou-me e rastreou passo a passo a primeira onda difusora da Lira Itabirana a fim de desenvolver sua dissertação de mestrado a respeito da recepção inusitada dos versos drummondianos face ao colapso do mar de lama em Mariana. Colaborei intensamente com a pesquisadora, chegando a participar, de modo virtual, da defesa pública de sua pesquisa justo quando encontrava-me no Hemocentro do Hospital de Clínicas da UFRGS de Porto Alegre, em plena pandemia da COVID19. O título da dissertação de Ana Paula, de 2019, é Semioses poéticas em ambientes multicódigos: o fenômeno comunicacional a partir de Lira Itabirana, de Carlos Drummond de Andrade, cuja leitura recomendo.

Um adendo: no ano de 2018, já havia sido procurado ao telefone, duas vezes, por certo jornalista da Folha de São Paulo que dizia buscar, para o caderno de variedades daquele órgão, “mais e melhores informações” acerca da Lira Itabirana a fim de resenhar algum livro sob encomenda da pauta de seu editor chefe. Como nada de novo lhe dissera, ou, por outra, já lhe advertisse contra os riscos de uma leviana superinterpretação, indiquei-lhe o meu próprio A máquina do fundo, constante do Arame Falado, de 2012 constante do Arame Falado, de 2012, publicado juntamente com Drummond, farmacêutico na página literária da Revista da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência – SBPC, em 2013. O alegado interesse do jornalista se foi então lentamente diluindo na escuridão maior até que por completo desaparecesse. E que bom: pois nenhuma crítica ou teoria literária deve degenerar em coleção de miscelâneas pinçadas pela força apelativa das desgraças conjunturais e o panexplicativismo das panaceias hermenêuticas de ocasião, em franco abuso sensacionalista da ignorância em histórias geral e do Brasil que entre nós campeia, sobremodo entre os mais jovens e sugestionáveis pelo clamor rocambolesco das mixórdias. Camões e Drummond talvez mereçam esses rápidos esclarecimentos. As suas máquinas do mundo, caladamente, agradecem.

Arame Falado, 2012

Arame Falado, 2012

CERTEZA E FUTURO

Mas é assaz conhecida a vetusta frase de Catão,
que dizia admirar-se que um harúspice
não risse ao ver outro harúspice.
Cícero, De Divinatione

Entretanto, os arúspices famosos
Na falsa opinião, que em sacrifícios
Antevêm sempre os casos duvidosos
Por sinais diabólicos e indícios,
Mandados do Rei próprio, estudiosos,
Exercitavam a arte e seus ofícios,
Sobre esta vinda desta gente estranha,
Que às suas terras vem da ignota Espanha.
Camões, Os Lusíadas

O HARÚSPICE DE CALICUTE

parece ter sido costume etrusco: revirar moelas a fim de se predizer os futuros, lidar em fígados de ave ou carneiro alguns segredos mais fundos. mas um harúspice não se presta ao auspício dos áugures (seus trajetos de aves) nem ouve na vox populi o alarido das mensagens. ele ignora as orbes da astrologia e os vapores da pitonisa. e também do oniromante se distancia, assim como do vaticínio das sibilas. o harúspice sabe a vontade dos deuses pelas vísceras do sacrifício, técnica aliás tida por Cícero como risível. cheguemos porém a esse nosso mundo dos vivos: as tais vacinas e seus detratores, os negacionistas bandidos, desse modo nomeados segundo a psicóloga-poetisa-ativista, defensora das luzes de Lacan e dos cartéis da microbiologia. não poupou argumentos e reuniu seus espantalhos sob o epíteto inapelável de fascistas. depois encerrou suas declarações com pressa e soberba, roendo cutículas: urgia traçar o horóscopo do próximo dia, pois certa conjunção planetária (confirmada pelo calendário maia) por certo nos atingiria – e seus efeitos cataclísmicos eram iminentes e incalculáveis, de alegada potência paroxística. dona Gládys, doravante octogenária fascista, nada entendera daquilo, apenas notava algumas ruas vazias. falaram-lhe em lockdown e ela indagando sobre a nova hora da missa. respondeu-lhe ao cabo uma vendedora de empadas que guardava seu ponto na calçada entre duas esquinas. comprou-lhe então quatro (duas de carne, duas de galinha). dizia que para seus netos, uns trancafiados traquinas.

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[Imagem: modelo romano em bronze de um fígado usado em haruspicação]

OS POEMAS DO TARANTINO

Captura de Tela 2023-02-18 às 14.12.39

ARQUITAS DE TARANTO

do aço a hélice funde a foice
colhe o inço e atiça as ânsias
transferindo torque ao fuso
rádio e ulna, mão e punho

o raso acopla-se ao fundo
e sem prego, agora juntos
mudam-se os cabelos
na cabeça do parafuso

mas a rosca na espiga
procura porca ou furo
Arquitas, o Tarantino
observa um caramujo.

* * *

ARQUITAS DE TARANTO II

o que gira em torno:
um rio em remoinho
tornado sorvedouro

o que gira em torno:
o roliço que a morsa
mantém no tronco

o que gira em torno:
a espiral de abutres
ao redor do morto

o que gira em torno:
uma suína dita porca
pelo pênis do porco

o que gira em torno:
a estrela de Galileu
renegada pelo fogo

o que gira em torno
o saca-rolhas na cortiça
descobrindo um Porto.

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O MISANTROPO

MOLIERE

Et, parfois, il me prend des mouvements soudains,
De fuir, dans un désert, l’approche des humains.
Le Misanthrope
Jean-Baptiste Poquelin, dit Molière

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VIDA DE ALCESTE

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não se trata aí de qualquer síndrome do pânico
nem propriamente de temer ou recear humanos:
melhor seria ressabiar-se com a própria espécie
eliminar o que não carece, viver vida de Alceste

além de bocejos e nojos, quando um tédio vira enjoo
procura-se certo algures contra a empáfia do vaidoso
ou o fleumático puro visgo do pernóstico incorrigível:
o recatado então retira-se (e se à francesa, sai de fino)
recluso aos espaços protegidos, inclusive cenobíticos

uma copiosa jurisprudência corrobora essa cautela
de gato muito escaldado contornando da tina ao poço
a bem evitar o contagioso de miasmas ou perdigotos
já entregou os pontos: é meramente um misantropo.

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CASTELO DE ARTELHOS

Captura de Tela 2022-10-24 às 23.40.05foto de Maisee Anderson

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“o que acontece ao ar” é a dança
H. Helder, Antropofagias

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HÁLUX II

a difusa luz na moleira
amornando o mármore
e uns mágicos elásticos
dos atilhos musculares

sorrisos calam martírios
em movimentos suaves
e no cerrar das cortinas
sob as meias tudo arde

o seu castelo de artelhos
vive à beira do desastre
mas em cada sapatilha
algo revoga a gravidade

um pino vivo em vórtice
sustentando-a pelos ares
no ponto de apoio móvel
as forças ocultas do hálux.

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[in Hálux, inédito]

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LISERGIA DA CILIBRINA

CARTAZ

para Arnaldo Baptista,
com um empréstimo
de Otto Lara Resende

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O INQUILINO DO SUBLIME

na figurinha do escapulário
o delírio aquático do pássaro:
sublingual, de sono e ópio
o seu sonho de peixe à vela
tocava a música dos olhos

de transcendência ardente
(às vezes meditativa e triste)
dançou pela rua das flores
lendo a epístola aos liquens
e recolhido por lá agora vive
como inquilino do sublime.

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[ARAME FALADO, 2012]

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200 ANOS HÁ 20

DP1

Crânio exumado de Dom Pedro I, Imperador do Brasil.

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QUEROSENE

vamos desaprender ofícios
de capitão do mato
de pais & bisavós silvícolas
com passaportes de antepassados
alemães fugidos e famintos
ou italianos tutti ladri
primos de holandeses polacos
como rebolados crustáceos
embranquecendo no Recife
onde quebram as ondas
e filhas de Oxum
ariscam a gente à noite

ciranda sanguinária
de nossa aurora mãe gentil:
cangaceiros contra a Coluna
sem peixeira nem facão
sem Prestes nem Lampião
juntando a rapa do sebo de velas
dos mais finos castiçais
levados por velozes canelas:
pura prata do clero e da nobreza de antanho
de dons e marias loucas e nóbregas
pombais e bonifácios com infantes
em caravelas cabrais
no canal de corinthians versus flamengo
naufragando seu mar de gente
na tv a cabo do colomboval

aos domingos todos favelam a felicidade:
nas asas do varejo dadonde o macaco avoa
sequiosos símios sandecidos torcem
um gol um gole um golpe um galope

maravilha humanitária na corveia
da nossa justiça divina de salomônicos seriais:
repartições de a meio em batimacumbas rituais
benzidas da erva certa
curam-se todas moléstias
e a muito custo distribuem-se farelos
de expurgos seculares:
vão-se os anéis, ficam os degredos

esplendor parasitário
da nossa classe média cibernética
de gurus arrivistas homeopatas
magos bruxos psicanalhistas:
portadores da cura da vida
mercadores de elixires ou dietas miraculosas
introduzam suas doutrinas da fossa e do brejo
gaguejem o mesmo braile de sanfoneiro cego
e azulejem Zumbi no mural de Rivera
em plena vereda repisada
pois afinal se Frida cala consente
em ser sem Portinari
o nosso Picasso rupestre:
umbu não é cipreste
e não há Lawrence algum
nas arábias desse agreste

pelo burro bíblico e outros camelos menores
afinal como te lhamas?
agora nem Glauber nem Globo
na malária da manjedoura, o velho cinema novo:
nossa estética é essa novela vaga da falta da fome de si
párias dos gênios da raça, Darcy & Golbery

se o rastro do curupira é mesmo ao contrário
índio vira indiano e malandro bom não sai de lacaio
então aproveita essa baderna e vai negão:
esquece as trompas da mulher biônica
bebe todo teu cafebre de maomestiço
corre pro Ganges, toma um banho sem medo
e afunda no barro esse nervo
que da noite pro dia ninguém vira grego

captura tua sopa no próximo calango
crava essa estaca de oscarcandango
e engrossa no pirão de farinha e sangue
o tal panteão do lábaro estrelado
no imenso barro vermelho
desse cerrado banguela

Brasil: epitáfio do carvão
quem vai tirar do prego o penhor dessa igualdade?
quem mama sozinho no seio dessa liberdade
e ainda desafia o nosso peito à própria sorte?

há séculos nossa fala é aos gritos
e nosso estímulo é um relho
que não afeta o cágado em seu casco
e jamais alcança os ligeiros

ó Grécia homérica
berço esplêndido da cultura acidental
por onde escoaram teus mares rios adentro
até às amazônias dessa civilização brasileira?
de quantos watts se ressente teu brilho
para fazer raiar a liberdade no horizonte de Creta?
que óleo queima em teu lampião de Diógenes?
de quantas Marias Bonitas se faz uma Helena?
e de que fio de Corisco se tece um Menelau?

ó História
por que te dissipaste assim no hálito das noites?
esquece essas mentiras
do Pravda da semana passada
levanta logo essa saia
e apresenta esse peito para uma chupada dengosa
ostenta com fúria tuas tetinhas minúsculas
de boêmias sucções
tritura essa hóstia-bóstia
e torra o bagaço dos teus medos
no fogareiro desse campo de descontração
pois Camus ou Hegel são torresmo de botequim
e os desfiles de Mao nem são assim tão ruins
com Polpots de colombina
entre crânios, Noriegas e arlequins

por isso foda-se esse ignorar de lufidis!
deita ao meu lado, lambe meu mamiluco
sacode sobre as colunas do tempo
o pó desse tapete voador
fale coisas queridas e mimosas
de garota anuviada de romantismos
e de sexo muito humanizado de erudito
com puros-sangues elegantes e altivos
de cavaleiros aristocráticos
trajando roupas próprias
diante de plateias finíssimas
com doirados binóculos
e luvas abafando aplausos
entre as plumas dos chapéus
das madames que não comem carne
e retocam seus cascos de éguas velhas
com manicures a domicílio
enquanto seus maridos veados
são currados por jóqueis nos estábulos

mas não vos amotineis pois em vão vos digo:
bem-aventurados os estados de sítio
pois esses entrarão no reino dos seus

por isso aproveita a ocasião
e voa para bem longe daqui:
pairando sobre naves de rapina
o corvurubuabutre
é menos augusto que seu primo
carcaráguiafalcão

carniça de urubu ou presa de águia?
resto ou caça? acaso ou conquista?
nada disso agora importa:
irmanadas no asco da putrefação
caça e carniça não referem
a dignidade gloriosa ou humilde
da circunstância de seus abates
ou da circunspeção de seus abutres

nem caça nem carniça:
que venha o sacrifício, isso sim!
agora invoca nesse tambor o teu Dioniso mestiço
(aquele das noites varadas no clarão dos aflitos)
e explica que esse bode
não carece de ser lilás
para minguar dessa vida diletante
os teus-meus delírios de grandeza
e outras miudezas à venda
no armazém de secos e molhados
da alma estendida
em mantas de charque gorduroso
sobre o altar de imolação
do cordeiro de Zeus

ou então não faça nada disso
e apenas aproveite a promoção do dia:
querosene a granel
e balas de goma da estação passada.

*

[Paris, 2002. Publicado em O resmundo das calavras, 2005]
*

*

CONTRA A VANGUARDICE ACADÊMICA

Captura de Tela 2022-09-06 às 11.11.21

 

[poema de 2013, In Hálux, inédito]

OUTROS ALINHAMENTOS

AVV

SIZÍGIA

as marinas pedagiadas
por sabujos archoteiros:
os servos do tremeluzir
banhando-se nos breus
da falsa luz nobilitante
(a vanglória dos janotas)

a lenta parturição medial
no cochicho das calúnias:
as flanelas e os surrupios
fermentos do pão pacóvio
sobre as ronhas do salitre

em envoltórios encardidos
nervo e caco de espinhaço
na eclusa face à banquisa:
pela maré das águas vivas
acerto e azimute da sizígia.

[Hálux, inédito]

OS HOMENS AMERICANOS

ponta

AS PONTAS CLÓVIS

pelo
istmo
entre
a Sibéria
& o Alasca
quando
o homem
(dito
das cavernas)
marchava
gelado
sobre
as águas
(comendo
mamutes
buscando
passagens)
as pontas
de lança
que ele
lapidava
nós, insolentes
dizemos
lascadas.

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[texto de 2011, inédito]

MAURITIA FLEXUOSA

LUAR DO BURITI

coados
de ourossol
esguichando
por fontanário
micante:
os brilhos
do buriti
no breu

em balanços
de cacho e palha
um uirapuru canta
ao luzir pulsátil

sei que ainda
vai voltar:
minha terra
tem palmeiras
onde toca
o Tom Jobim.

 

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[in Hálux, inédito publicado no Instagram da  Revista Peixe-Boi] 

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DA “CLAVIS PROPHETARUM” AO ANACRONISMO IDENTITÁRIO

200621-padre-jose´de-anchieta-lisboa

O estilo pode ser muito claro e muito alto;
tão claro que o entendam os que não sabem
e tão alto que tenham muito que entender os que sabem.
Antônio Vieira, Sermão da Sexagésima

GRANDE SERMÃO: VIEIRA

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morre a carne para viver no verbo. e há os que se ocupem em fazê-lo eterno, convertendo galhardos gentios de alvoroços e ócios ao sereno murmúrio das jaculatórias. ou amansando índios pela sageza de panegíricos capazes de colher primores e primícias até de finezas invisíveis. alguns fazem dessa conversão um progresso: semeadura que fertiliza e medra ao tocar o solo certo, água da palavra minando contra o fulgor do infértil. comover, convencer: amanhar o espírito para as sementes do evangelho. já outros (muitos) para pregar aos ditos brutos preferem o martelo: golpes sobre o fiel insciente de ser apenas mais um prego, rês sem pastoreio, consciência posta a ferros. mas o semeador que lança grãos à pedra, entre espinhos ou pela estrada, sequer assim os desperdiça quando passa. a quem conhece a verdade por parábolas é dado distinguir o dom da graça, saber do concupiscente para melhor tanger-lhe alma. e se suas sementes são palavras, não convém que tratem coisa tanta ou vária. a fala em excesso diversificada é tiro sem escopo nem bala: raso onde o eloquente e o falastrão por igual naufragam. dos que saem a semear, convém cuidar os passos: saber o que logram fora e, de seus grãos, quais e quantos brotam, pois para pregar aos olhos, mais convém as obras. além das tais palavras, sempre certas e bem ordenadas. porém não como ladrilhos, antes feito estrelas: cada qual no seu lugar e jeito – em estilo muito alto e muito claro, como se há de pretendê-lo.

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[Acima, o original da Clavis Prophetarum, de Antônio Vieira, revelado ontem ao mundo.
Poema de 2012, in: Hálux, inédito.]

PRIMEIRO DE MAIO

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O ASCENSORISTA

oficial treinado, decorou o painel (refeito) para que sobre a banqueta exígua até com lâmpadas queimadas mantivesse a viagem tranquila. adentra a cabine, despede-se do dia: uma carburação de bisteca & jerimum conserva suas costas tesas na dormência da sambiqueira. à tarde doma o sono em pose de mordomo: espreme a uretra entre joelhos juntos e escora um ombro. disfarçando-se com recato em voz de comissário, encerra a jornada (sempre exausto) entre nuvens de amoníaco e acenos às serventes de cada piso. logo apressa o pregão e a demanda dos andares: talvez já faça noite na próxima aterrissagem. o sol do relógio enfim põe-se à soleira da portaria. parte temendo os automáticos de puro aço e voz feminina.

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[in Hálux, inédito]

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ADEUS A BRUNO PALMA

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Vai-se um grande amigo a quem não consegui visitar em seus momentos finais: Frei Bruno Palma (1927-2021). Ei-lo acima, em seu hábito religioso da Ordem dos Pregadores, O.P. Como sacerdote dominicano, tradutor, linguista, filólogo, poeta e polímata, foi mestre de alguns e aluno disciplinado dos mais ilustres pensadores do seu tempo aqui e alhures. Até os seus 94 anos, cultivou a virtude da humildade de quem sempre procurou manter-se fiel à voz dos grandes nomes da poesia universal justamente quando por aqui entrava em voga a fácil intervenção abusiva (dita: “criativa”) nas produções alheias. Frequentávamo-nos mutuamente, discutíamos filosofia da arte (ele fez um livro corrigindo as citações religiosas na obra de Portinari), hermenêuticas de minúcias teológicas e os descaminhos das políticas culturais, inclusive sem limites de temas laicos e inclusive eróticos, para minha completa surpresa. Sempre que possível, corrigíamos nossos poemas e ensaios em voz alta. Cheguei mesmo a gravá-lo em algumas leituras de seus poemas, editados caprichosamente por Plínio Martins Filho. Frei Bruno atravessou intensamente o fervilhar do século XX: conheceu Mário de Andrade muito cedo, fez pesquisas doutorais com Algidras Greimas na França, onde também assistiu a Sartre e a praticamente todos seus contemporâneos e adjacências. Em verdade, frei Bruno fora educado pela elite mais rigorosa dos pensamentos tomista e aristotélico na Europa, enquanto no Brasil tornou-se assistente de Antônio Houaiss e teve os originais das suas traduções Saint-John Perse anotados à mão por Paulo Rónai (aliás, conservo comigo uma cópia dessa relíquia de crítica genética). Graças ao estímulo do também inesquecível mestre Alfredo Bosi, publiquei, pela editora COM-ARTE/USP, o livro Bruno Palma, escolhedor de Palavras – ensaio sobre a arte o ofício de um tradutor, apresentado pelo Professor Jean-Pierre Chauvin nessa generosa resenha. Como se percebe, fiz questão de colocar o nome do tradutor no título da obra, algo talvez estranho para quem nunca tenha pensado na elisão no nome dos tradutores tantas e tantas peças que nos chegam aos olhos. À medida em que me sinto abalado por sua morte, considero-me também altamente privilegiado por ter tido acesso à obra de Bruno Palma, em parte inédita, tanto em poemas dele mesmo, quanto em traduções suas, incluindo-se aí os seus percursos pela aurora do pensamento chinês no Ocidente. Aos que não puderam conhecê-lo, asseguro que ele ficou deveras contente em notar seu reconhecimento em vida para além dos prêmios e láureas que recebeu. Muito pessoalmente, acredito ter cumprido um dever cultural que me coube um tanto por vias acidentais. Entre suas lições, frei Bruno ensinou-me ser cada vez mais urgente cuidarmos da comunidade espiritual que pretende celebrar a vida da Palavra entre os que partiram e os que ainda hão de chegar. Glória e honra aos que souberam moderar o próprio tom para que quem tivesse o que dizer bem falasse e fosse ouvido. Descanse em paz, irmão.  

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DIALÉTICA DAS MANICURES

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ÚNGULA

arrebenta as portas da casta ausência:
o casco voraz é logro e osso noite adentro
procura de cauda e teta no ribeirão do lodo
um couro afável fazendo-se contíguo (ou ser)

o prumo torna-se mais ríspido se rodopias
retraço e rédea de labaredas abafadas: avernal
é o silêncio da pérola no ventre, berro engolido
em gozo cego cardando a lã de calmas nuvens

o bafo sua o lombo exausto da montaria
e as mãos que porventura tocariam crinas
repousam sobre um rosário de petúnias.

 

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A SAGITÍFERA ANALOGIA

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I asked him to admit
that there was not a rhinoceros in the room,
but he wouldn’t.
Bertrand Russell sobre Wittgenstein

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ALJAVA VAZIA

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que provém das falas
d’O Estrangeiro n’O Sofista:
quem enuncia visa o ser
como o arqueiro mira o alvo

na floresta do alheamento
à espreita de um javali alado
o caçador empunha o arco
quando subitamente paralisa

levando a mão às costas
percebe sua aljava vazia.

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A SOPA PRIMORDIAL

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OPARIN

brota um furo de urro
no núcleo de magma:
Urano ardendo de dentro
um jorro de gozo
em caldo de brasa

do átomo à proteína
e desta à célula
da cratera à selva
em sucessivas atmosferas
do gasoso ao glacial
da bactéria ao animal
sobre a mesma crosta
a minhoca e a mosca
pousada na casca
à espreita do bípede
na árvore de sua casa:
a fera mamífera que fala.

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[O Resmundo das Calavras, 2005]

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OS TRABALHOS E OS DIAS

 

MIDAS BIJUTERIAS

dispensado
da joalheria
cultivava
suas cintilâncias
com o que tinha:
de um ouro
aparente
e de umas gemas
de acrílico
o velho ourives
seguia tirando
o sustento
dos filhos

da alquimia
à maquiagem
obtinha ligas
que tingidas
de dourado
a todos olhos
encantavam

meticuloso
não gostava
que dissessem
ser de tolo
o seu precioso
falso ouro

e tão modesto
com tal dom
de reproduzir
o que rebrilha
que só dizia
imitar o Midas
em seu toque
de bijuteria. 

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[ARAME FALADO, 2012]
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JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER

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O TIRADENTES

passam-se
pelejas brutais
no diminuto espaço
de uma cavidade bucal

entre Sião e o cianureto
a escolha do melhor meio
encontra a misericórdia
nos ferrinhos do dentista

a panóplia do hoplita
de avental e xilocaína
a gana em escala reduzida
e o sinistro ar de glória
aceso em seus olhos
quando mostra no alicate
um rubro molar inato

mouro que decapita
um cruzado.

 

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[ARAME FALADO, 2012]

 

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LOS GAUCHOS

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Gaúcho. Fulvio Roiter, 1968

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Velho bivaque nativo
encravado na coxilha
Palanque de coronilha
do Rio Grande primitivo,
altar do fogo votivo,
que um dia o guasca acendeu.
Jayme Caetano Braun, Galpão nativo

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TRUCO TROPEIRO

bem acochambrados
por arreios e pelegos
mal vertebram leitos
sem os seus sarrafos

ao redor das trempes
a boleadeira e um laço
no retoço de uns guris
cevando mate amargo

nas imensas vacarias
o vagido dos novilhos
venta sobre a carpeta
próxima aos cavalos

um truco treme o charco
e o baralho vai ao barro:
em cada naipe perdido
um quero-quero calado.

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DO CAMANDRO

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O MEMBRO VIRIL

descapotável
ou circuncidado
o verniz sobre
a glande ogival
acoplada ao saco
com bolas dentro
(novelos no bolso
do lanoso escroto)

se reprodutivo
além de urinário
submete-se a tratos
de micção ou priápicos

mangueira
apagando brasedos
fonte diluvial
a inundar formigueiros
índice diferencial
entre os gêmeos
jorro fertilizante
no colo do estrogênio

macaco hidráulico
movido a pupilas
e ativado por carícias
na súplica dos orifícios
lancetados estes
pelo corpo cavernoso
pilão ou monjolo
a depender
do sistema psíquico
em fluxo sanguíneo
contando já com
ajutórios eróticos
e/ou bioquímicos

fuste de taquara
dente do gadanho
esporão de azagaia
aríete em marrada
encarando corolas
bocas, palmas
covas bigúmeas:
o membro luzente
correndo as grutas.

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CUIDAR A COLMEIA

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ODE À ABELHA

[Pablo Neruda]

Multidão da abelha!
Entra e sai
do carmim, do azul,
do amarelo,
da mais suave
suavidade do mundo:
entra em
uma corola
precipitadamente,
por negócios,
sai
com traje de ouro
e quantidade de botas
amarelas.

Perfeita
desde a cintura,
o abdômen rajado
por barrotes escuros,
a cabecinha
sempre
preocupada
e as asas
recém feitas de água:
entra
por todas as janelas olorosas,
abre
as portas da seda,
penetra pelos tálamos
do amor mais fragrante,
tropeça
em
uma
gota
de orvalho
como em um diamante
e de todas as casas
que visita
tira
mel
misterioso,
rico e pesado
mel, espesso aroma,
líquida luz que cai em calhas
até que a seu
palácio
coletivo
regressa
e nos góticos merlões
deposita
o produto
da flor e do voo
o sol nupcial seráfico e secreto!

Multidão da abelha!
Elevação
sagrada
da unidade,
colégio
palpitante!

Zumbem
sonoros
números
que trabalham
o néctar,
passam
velozes
gotas
de ambrosia:
é a sesta
do verão nas verdes
solidões
de Osorno. Acima
o sol crava suas lanças
na neve,
relumbram os vulcões,
ampla
como
os mares
é a terra,
azul é o espaço,
mas
há algo
que treme, é
o ardente
coração
do estio
o coração do mel
multiplicado,
a rumorosa
abelha,
o crepitante
favo
de voo e ouro!

Abelhas,
trabalhadoras puras,
ogivais
obreiras,
finas, relampejantes
proletárias,
perfeitas,
temerárias milícias
que no combate atacam
com ferrão suicida,
zumbi,
zumbi sobre
as dádivas da terra,
família de ouro,
multidão do vento,
sacudi o incêndio
das flores,
a sede dos estames,
o agudo
fio
de perfume
que reúne os dias,
e propagai
o mel
ultrapassando
os continentes úmidos, as ilhas
mais distantes do céu
d’Oeste.

Sim:
que a cera erga
estátuas verdes,
o mel
derrame
línguas
infinitas,
e o oceano seja
uma
colmeia,
a terra
torre e túnica
de flores,
e o mundo
uma cascata,
cabeleira,
crescimento
incessante
de favarias!

 

[tradução de Marcus Fabiano Gonçalves]

* * * 

ODA A LA ABEJA

[Pablo Neruda]

Multitud de la abeja!
Entra y sale
del carmín, del azul,
del amarillo,
de la más suave
suavidad del mundo:
entra en
una corola
precipitadamente,
por negocios,
sale
con traje de oro
y cantidad de botas
amarillas.

Perfecta
desde la cintura,
el abdomen rayado
por barrotes oscuros,
la cabecita
siempre
preocupada
y las
alas
recién hechas de agua:
entra
por todas las ventanas olorosas,
abre
las puertas de la seda,
penetra por los tálamos
del amor más fragante,
tropieza
con
una
gota
de rocío
como con un diamante
y de todas las casas
que visita
saca
miel
misteriosa,
rica y pesada
miel, espeso aroma,
líquida luz que cae en goterones
hasta que a su
palacio
colectivo
regresa
y en las góticas almenas
deposita
el producto
de la flor y del vuelo,
el sol nupcial seráfico y secreto!

Multitud de la abeja!
Elevación
sagrada
de la unidad,
colegio
palpitante!

Zumban
sonoros
números
que trabajan
el néctar,
pasan
veloces
gotas
de ambrosía:
es la siesta
del verano en las verdes
soledades
de Osorno. Arriba
el sol clava sus lanzas
en la nieve,
relumbran los volcanes,
ancha
como
los mares
es la tierra,
azul es el espacio,
pero
hay algo
que tiembla, es
el quemante
corazón
del verano,
el corazón de miel
multiplicado,
la rumorosa
abeja,
el crepitante
panal
de vuelo y oro!

Abejas,
trabajadoras puras,
ojivales
obreras,
finas, relampagueantes
proletarias,
perfectas,
temerarias milicias
que en el combate atacan
con aguijón suicida,
zumbad,
zumbad sobre
los dones de la tierra,
familia de oro,
multitud del viento,
sacudid el incendio
de las flores,
la sed de los estambres,
el agudo
hilo
de olor
que reúne los días,
y propagad
la miel
sobrepasando
los continentes húmedos, las islas
más lejanas del cielo
del Oeste.

Sí:
que la cera levante
estatuas verdes,
la miel
derrame
lenguas
infinitas,
y el océano sea
una
colmena,
la tierra
torre y túnica
de flores,
y el mundo
una cascada,
cabellera,
crecimiento
incesante
de panales!

[Pablo Neruda]

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DUAS PEDRAS, UM CAMINHO: RÉGIS BONVICINO E O BONDE DO ROLÊ

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O discurso identitarista sequestrou robustas desigualdades por um autêntico mercado da diversidade pretensamente inclusiva. Eis mais um sintoma do pseudomarxismo culturalista no seu desempenho distrativo das inteligências potencialmente mais ameaçadoras em termos transformacionais. Portanto, não é nada gratuito que seu campo de disseminação seja exatamente o espaço universitário, com suas chancelas acadêmicas e suas “epistemes” para lá de discutíveis. Tal quadro logo precipitaria certos ativismos cujos protagonistas, em regra, jamais registraram qualquer vínculo com militâncias anteriores ao advento de seus avatares virtuosos nas redes sociais. Essa curiosa circunstância, assim digamos, contemporânea, aliou-se às facilidades editoriais antes indisponíveis, conduzindo a criação, inclusive poética, a uma extraordinária massificação de imposturas ideológicas ávidas pela visibilidade em um espaço virtual forjado por controles e simulacros. Uma nova performance aí encenava seu número há muito conhecido pelos investigadores da consciência moral: a busca pela capitalização dos efeitos secundários da bondade. Ocorre, entretanto, que até o mundo das artes se fez infenso às reformas por diatribes literárias, isso para gáudio das lavanderias dos mecenatos e desgraça das iniciativas universalizantes no terreno da educação pública. Entre os silêncios e as conveniências de um gregarismo organizado pelo sistema de dom e contra-dom, vetustas linhagens de elites recredenciaram-se no comércio do entretenimento, recrutando justamente nas humanidades sua mão de obra barata e vaidosa a fim de conservar uma dominância pajeada por a(u)tores anódinos, clientes fiéis e assegurados herdeiros. É o bom negócio sem o desconforto da má consciência: terreno do iludido e do camelô de si mesmo trabalhando em prol da própria precarização.

Contudo, um outro movimento, socialmente perverso, simultaneamente corresponde a esta dinâmica acima descrita e mais ou menos asfixiada por sua própria irrelevância. Refiro-me à alta degradação das subjetividades que encontra no massacre da exclusão social uma de suas principais causas. E este é um fenômeno que vem ocupando um espectro disciplinar que compreende de filósofos da economia a neurocientistas, vez que sua complexidade ultrapassa a simples pobreza econômica expressa na insuficiência de bens ou renda. Ao acumular múltiplos efeitos deletérios, a exclusão social atua erodindo identidades intersubjetivas assentadas na mutualidade da confiança cooperativa, alcançando a devastação psíquica da auto-representação e convertendo-se na contrapartida mais escandalosa dos referidos avatares virtuosos do mundo virtual, esse luxo cognitivo capaz de estatuir para si & os seus todo um planeta dos super-representados, com pleno direito aos pré-moldados dos clichês opiniáticos e ao encanto de suas figurinhas marqueteiras de pujante hipercorreção moral.

Nessa contraparte alarmante, toda uma ecologia da subpobreza se faz habitada por miserandos e errantes, dentre os quais inúmeros irrecuperáveis. São seres desassistidos por quaisquer redes de segurança social, daquelas tipicamente orientadas pela compaixão reparacionista tardo-demagógica (logo: pouco eficaz em termos massivos) ou pela total indisponibilidade para se realizar inversões primárias de larga escala (ou seja: além do alcance geracional de um mero ciclo eleitoral).

De muitos modos a poesia brasileira tentou dar conta desse espectro de mendigos, lumpens, indigentes, cracudos e incalculáveis gêneros de moradores de rua cujas biografias foram reduzidas a um anonimato tristíssimo e absorvido por paisagens de frenética indiferença. Ora são delinquentes que realimentam o estereótipo da periculosidade urbana guardada por carros blindados e cercadinhos VIPs, ora são a derrota prostrada dos que sobrevivem liquidados pelo chão, sob marquises, entre sacos plásticos, abas de papelão ou suplicando esmolas e outras caridades oriundas do varejo governamental ou do altruísmo cidadão. O fato é que tais pessoas desceram muito abaixo da linha do subemprego e não puderam recobrar em si ou na sociedade ao redor as energias vitais para resistirem à associação arruinante entre o vício e o abandono, o torpor da dependência química e a crueldade do desamparo.

Enxergo aí duas grandes correntes de abordagens poéticas que procuraram dar conta desse quadro. A primeira delas pertence à alta literatura: tem raízes no pós-vanguardismo, construindo-se como resíduo de subsistência crítica em um espaço de falsos dândis digitais. Falo da poesia de Régis Bonvicino, eco especular de um ultrassom que revolve camadas de caos urbano para recobrar-se perplexo, atônito e, talvez acima de tudo, enojado pelos limites da própria impotência indignada. É uma poesia de tambor, culatra e cartuchos deflagrados. E do manejo de seu gatilho, nem deus sabe. Régis enxerga na combustão dos cristais de crack alguém se servindo de cachimbo ou narguilé. E quando “o anu bica o olho do noia”, fotografa esse personagem que cata alguma pedra no meio do caminho das cracolândias. Sim, o noia: gíria ainda carente de dicionarização mas perfeitamente incorporada ao léxico citadino de quem testemunha o estado demencial da constante paranoia dos viciados andrajosos e obsessivos na busca de algum cristal extraviado por outros usuários. Do seu recente libreto Deus Devolve o Revólver, de 2020, seleciono então o poema-faixa Haiku, cuja íntegra se lê abaixo antecedida pelo trato sonoro realizado pelo artista multimídia Rodrigo Dario. Nessa faixa do álbum que acompanha a obra escrita de Régis, ouve-se uma voz pausada e clara, todavia perceptivelmente remanescem em seu timbre fundos de fadiga e desalento.

A segunda abordagem desse universo da exclusão social provém de um terreno que lhe é muito mais próximo e familiar. Ela engendra uma irreverência cáustica capaz de samplear o fino da bossa das Águas de Março de Tom Jobim (na voz de Elis Regina) para introduzir uma surpreendente ironia diante dos mortificados. Falo aqui do estrondoso sucesso alcançado pela mixagem do trio Bonde do Rolê intitulada Fumano Crack, de 2012. Nessa composição multiautoral o conjunto serviu-se das seguintes bases: Tô usando crack, de MC Carol; Tá Cagada, de MC Dadinho; Vai Cracudo vs. Vai Cracuda, de Deeejay Daniel; Tu tá Cracudo, de MC Alexandre; e Relaxa no Crack, de MC Bahiano. À diferença da obra de Régis Bonvicino, esta não é uma poética do revólver, mas sim do fuzil. E ela guarda o baile funk como reduto de diversão e consumo relativamente permeável ao personagem do cracudo. O predomínio do funk é aí entrecortado por hits sertanejos e fingidas admoestações neopentecostais, colocando-se a maconha recreativa em paralelo com o “copinho de Guaravita” usado pelo maltrapilho magérrimo e imundo que vendeu o pouco que tinha para “relaxar no crack”. Como não bastasse, ainda se zomba da viciada que “fica suave” e desce até o chão em plena incontinência intestinal: “toda cagada”. O efeito dessa combinação sonora e poética é simplesmente avassalador. E sequer faltou quem visse nesse torpedo de denúncia e derrisão iconoclasta uma apologia ao uso de drogas ainda mais pesadas: “use crack que é mais light”.

Os versos apurados na longa trajetória do poeta e editor Régis Bonvicino ou a estrondosa mixagem dos jovens do Bonde do Rolê? Estão abertas as vias de cotejo, comparação e complementariedade entre estas duas poéticas cujas perspectivas nascem de pontos de fuga distintos a respeito de um mesmo objeto. Gostaria de aqui também tratar da urgência dos consensos demandados face a estados tão flagrantes de injustiças sociais. Contudo, e muito infelizmente, cada vez mais parece que as minguadas energias emancipatórias da dita “classe artística” foram drenadas por um circuito de imposturas ideológicas e fisiologias dissimulantes que tudo imobilizam em um ludismo medíocre e presunçoso na sua comiseração sem consequências. Diante disso, é até natural que as produções resultantes de um tal contexto sejam integralmente reunidas sob uma mesma rubrica genérica do oportunismo panfletário. E caso tal nicho já se constitua mesmo em uma nova singularidade de nossa miséria estética, convirá lograr a respeito dele, e para quem puder, alguma lucidez.

HAIKU

Pedra no cachimbo
Estação da Luz: porrada
Verão, sol lilás

Pedra, narguilé
Doce como mel: porrada
Verde, o sol âmbar

É o Incrível Hulk
Um avião nos pés: porrada
Janeiro, sol púrpura

Uns tragos na lata
De asas já nos pés: porrada
Março, sol turquesa

Cachimbo, cristal
Braços alados, porrada
Março, um raio fúcsia

Lata sem anel
O anu bica o olho do noia
Isqueiro na dobra

Pedra no cachimbo
Arco-íris nos pés, porrada
Dezembro, sol sépia

Canudo, Yakult
Mãos lixam o céu, porrada
Março, sol magenta

Cachimbo na roda
Garras de tigre, porrada
Janeiro, sol jade

Em nome de Buda,
Nada obstante uma brisa
Verão, sol sem cor

Cavalo, porrada
O tubo de pvc
Outono, sol ágata.

*  *  *

O mix Tô fumano crack, do Bonde do Rolê:

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O VELHO MARINHEIRO

unnamedfaça como um velho marinheiro
que durante o nevoeiro leva o barco devagar
Paulinho da Viola

O NÁUTILO

à razão áurea de sua concha curva, desenrosca-se uma espiral logarítmica: na foz dessa cornucópia é onde a cabeça dele habita, lá ao final das câmaras nacaradas unidas por sifões e tabiques. passageiro, carga & tripulante: come, comanda e faz a faina armando-se em nau furtiva de longo alcance. move até noventa tentáculos e ostenta um par de olhos quase nada apurados. todavia é bem apto a notar odores próximos e ao largo. resiste à hipoxia só com o oxigênio de seus cilindros, nadando como quem navega por jorros e jatos propelido. oriundo dos antanhos mais primitivos, precede plantas e dinossauros. vem das priscas eras de uma fauna marinha fervilhante em seu caldo. sua boca (dita rádula) é um ralador de peixes e crustáceos. fóssil vivo do mundo inteligente, traz no cérebro uma cápsula do tempo, emprestando nome ao submarino do capitão Nemo: Nautilus, do grego marinheiro (ναυτίλος).

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A INÚTIL PEDRA POLIDA

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HOMO FABER
HOMO LOQUENS

no manejo livre
da mão sem trilha
a menor mandíbula
que diz ou mastiga

à flor da pele doída
outro dente de leite
rasgando a gengiva

e que fosse prazo
ou siso à sua guisa:
tempo – hemorragia
que é a própria vida

ou mesmo poesia:
a inútil pedra polida
amolando os sentidos
que a fala não afia.

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BASF CHROME

de lamber o carretel
um cabeçote enguiça:
falha o mono/estéreo
no mais que se perde
ao se degravar a vida

e tudo engruvinhava
se lá no pleno cromo
da mastigação faminta
evisceravam-se bobinas
em festivais de tripas

aí eram os grunhidos
da menina possuída
ou um caubói baleado
enrolando a língua?

 

 

[in: ARAME FALADO, 2012]

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OS BONS VENTOS

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Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
Álvaro de Campos, Ode Marítima

BÓREAS & NOTOS 

a possante âncora deixa as fráguas
e de um cais de cantaria logo zarpa:
a grande vela o seu lençol desfralda
e no mirante um aceno chora a casa

no diamantino sonho das judiarias
uma aflição de ganho dos ministros:
guardados pelo dossel das oliveiras
sonham partidas de pimenta e seda

mais esmaltam brasões hereditários
quando é outro o agouro embarcado:
nas penhoras de arcanos e presságios
um limão no escorbuto do astrolábio.

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SALVE REGINA

No mundo luso-brasileiro, Aparecida é o culto mariano que só encontra paralelos na adoração a Fátima, em Portugal, ou no Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará. Mas isso não obstou que, em 16 de março 1978, o jovem iconoclasta Matheus Cavalcanti, de 19 anos, quebrasse o vidro protetor e arrancasse a imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição Aparecida do seu santuário em meio à escuridão provocada por uma queda de luz. Corria a missa das 20 horas. E no assalto ao nicho de ouro, a santa logo perdeu a coroa e teve destruída praticamente toda sua face esquerda. Perseguida pelas ruas, a escura imagem em terracota sofregamente levada pelo rapaz (encontrada em 1717 por três pescadores do rio Paraíba do Sul) foi por ele lançada violentamente ao solo, estilhaçando-se em mais de 200 pedaços, dentre os quais 165 do corpo e 35 da cabeça foram minuciosamente recuperados por freiras e fiéis, embora lamente-se que alguns vestígios tenham sido guardados por particulares como relíquias.

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Contando então com 35 anos de idade, a artista plástica e conservadora Maria Helena Chartuni, do Museu de Arte de São Paulo, foi logo encarregada de ordenar os fragmentos e recompor a integridade da estátua, trabalho que realizou com devoção, um adesivo à base de epóxi e sob o paradigma da Pietá de Michelângelo, então há pouco restaurada no Vaticano. Com pequenas mudanças no manto e no penteado, a fim de se lhe reforçar a estrutura, a imaginária de traços coloniais estava novamente hígida após exatos 33 dias de esforço concentrado. O retorno triunfal da imagem à sua Basílica ocorreu ainda no ano de 1978, em meio a uma imensa procissão de São Paulo até Aparecida do Norte, fato que consternaria o Brasil inteiro: era um país todo outra vez reunindo-se a partir de seus pedaços.

110 anos antes, em 1868, a Princesa Isabel havia visitado o santuário velho de Aparecida com seu esposo, o Conde D’Eu, e ofertara à santa o seu célebre manto azul brocado com 21 brilhantes, representando as 20 províncias do Império somadas à capital. No ano 1884, Isabel retornava a Aparecida para agradecer ao atendimento de uma promessa, provavelmente, cogita-se, sobre a gestação de seus herdeiros e a proteção de seu marido, que antes partira para a sangrenta Guerra do Paraguai. É então que Isabel oferece à imagem a coroa em ouro de 24 quilates com 300 gramas, cravejada de diamantes, uma réplica miniaturizada da sua própria, a ser usada como futura Imperatriz do Brasil. Estava assim integralizada a iconografia pela qual Nossa Senhora Aparecida é por todos nós hoje reconhecida, tudo ainda de acordo com uma estrita autorização papal concedida definitivamente apenas em 1904. Conta-se também que Isabel, pressentindo o golpe republicano tramado pelas elites escravocratas em represália à Lei Áurea, teria deixado à Aparecida um bilhete “como Princesa da terra que se curvava à Rainha dos céus”, rogando à santa que, caso não chegasse a subir ao trono, ela governasse perpetuamente o Brasil desde os potentados celestes.

Quanto ao perpetrador do atentado de 1978 à imagem, nada se fez contra ele: Matheus Cavalcanti foi sempre tratado como doente mental e sequer uma simples queixa fora prestada às autoridades policiais. O poema abaixo, de natureza pseudoanagógica, dediquei ao ensaísta e poeta Wladimir Saldanha, pois nutro a certeza de que uma leitura católica poderá ainda melhor se aproximar do coração de seu enunciado simbólico. Creio que esse poema constará em meu próximo livro, Hálux. Registro por fim que seus versos foram escritos em 2018, exatamente nos 40 anos de reconstrução da imagem de Nossa Senhora Aparecida.

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(RE)APARECIDA

fiéis reverentes
às mãos ambas
apeiam da chalana

e na pegajosa lama
do remanso
atestam as sotainas:
deveras, eis a santa

sob manto e coroa
sem tinta ou gesso
a terracota fita
onde haja
encorajamento

grãos em vagens
pistilos guenzos:
rodeavam-na
viçosos e derruídos
jovens e avoengos

um mormaço
cresta os beiços
e peregrinos
caem de joelhos
ante à padroeira

uns imitam cilícios
ao simular calvários
outros erguem círios
carregando ex-votos

dando graças
de salve regina
muitos choram
frente à figura
reconstruída
dos destroços.

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OS ONDES DO SER-AÍ

 

 

 

MŨDO*

1.
éter

dentro do escuro é muito espaço
(negrume contra o visgo lácteo)

2.
órbita

a bubuia flui solta no sem nado
(pura esquivança a todo tato)

3.
atmosfera

fechar-se sozinho em seu claustro
(e só nele libertar-se ao habitá-lo)

.

 


*MŨDO: na grafia do Português arcaico, o lugar onde tudo & todos estamos: mundu, world.

 

UNIVERSIDADE E SAÚDE DA CRÍTICA

CAPA

AUTOCRÍTICA E UNIVERSIDADE:
DO DISCURSO À FUNÇÃO SOCIAL

Boa noite Professor Laércio Martins,

Boa noite Professor Paulo Amarante, psiquiatra e professor aposentado da Fundação Oswaldo Cruz que divide esta mesa virtual comigo, boa noite a todos que nos acompanham pela internet; é um prazer e um privilégio poder contar com alguns instantes de vossas atenções.

Em primeiro lugar, parabéns ao jovem Professor Laércio Martins! Saudações também à preciosa iniciativa de publicação desta obra pela editora FI, casa de acesso livre e gratuito, na pessoa de Lucas Margoni, seu responsável. São iniciativas de ampla difusão como esta que orgulham o campo intelectual brasileiro ao mesmo tempo em que lançam mão da tecnologia para disseminação do conhecimento. Desejo que esta publicação logo se multiplique e encontre solo fértil para frutificar em debates e incorporações práticas. É uma imensa alegria ver transformada em livro uma pesquisa tão valiosa, cuja orientação no PPGDC-UFF tanto me trouxe, e agora nos traz a todos, como oportunidade de abertura reflexiva de alta intensidade a respeito do panorama da saúde mental no Brasil.

Escrevo convalescendo de uma internação pela COVID-19 no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul HCPA-UFRGS, em Porto Alegre, e faço questão de tecer estas reflexões a partir de tal conjuntura. E impossibilitado que estou de falar no momento, quero registrar algumas rápidas palavras que suponho oportunas.

A crise mundial do Coronavírus evidenciou a precariedade de nossas saúde pública e assistência social, revelando, porém, um colapso não apenas logístico e material, senão também uma penúria profunda no cultivo geracional de homens públicos e suas mentalidades, os quais deveriam, supostamente, ser orientados por noções aceitáveis de eficiência prestativa e capacidade de planejamento.

É neste instante que a dita “função social da universidade” precipita a urgência de uma revisão crítica dos lugares ocupados pela academia e a ciência brasileiras na condução do país. E embora se diga (aliás com muita razão) que o “pensamento está sob ataque” de ideais retrógrados, não se percebem balanços autocríticos das mediocridades corporativas ou sequer das gravíssimas desconexões com um sistema educacional básico igualmente arruinado, único modo seguro de universalização de uma cidadania capaz de ultrapassar as visões salvíficas do carisma e da religião. Basta mencionar que, ainda hoje, 50% das escolas públicas brasileiras continuam desprovidas de saneamento básico.

O desmembramento da realidade em partículas problemáticas autônomas, geridas por verdadeiros guetos intelectuais, provoca uma anulação da totalidade em cujo interior faria qualquer sentido a alta dicção da palavra “Política”. É desse mal que também padecem a universidade e a ciência brasileiras, inabordáveis que se tornaram tanto ao senso comum (reduzido à mais pedestre ignorância) como ao reconhecimento imediato de suas atuações pela sociedade civil (em parte desinformada e sequestrada pelo clientelismo de gestões parasitárias). Refletir, pois, sobre suas próprias omissões coniventes com alianças espúrias no espaço público (em grande escala) e/ou com o comprometimento da saúde psíquica (no âmbito dos sofrimentos individuais), torna-se imprescindível. E a presente obra, acredito, tende a se tornar um subsídio incontornável para a execução desse movimento.

Na folga semântica das generalidades abstratas sobre os direitos humanos, costuram-se acordos lenientes e convergências táticas entre altaneiras ideias gerais e mesquinhas realidades concretas. E esta vagueza cedo promove a sintonia entre “discursos” sobre os transtornos mentais e interpretações do processo de “medicalização”, via de regra,  (1) apelando a certa romantização do sofrimento psíquico e (2) reproduzindo imaginários de exceção sobre o louco-gênio (Artaud, Van Gogh) ou mesmo (3) perpetuando paradigmas obsoletos, dentre  os quais muitos ainda presos às irradiações do estruturalismo francês dos anos 1960, como é o caso da psicanálise, cuja focalização da neurose no atendimento individual mostra-se capaz de ignorar censuras como a do antropólogo Claude Levi-Strauss ou do filósofo do conhecimento Mário Bunge, recentemente falecido, que a considera pura e simplesmente uma pseudociência.

Impulsionado pela falta de debates reais e pela inflação de glosas, os desdobramentos dessa ausência de rigor inevitavelmente desencadeiam os arranjos de um ecletismo favorecedor da fisiologia das medianias conciliatórias desprovidas de clareza programática. E, tanto na medicina como no direito, perpetua-se uma lógica de castas que se autoproclamam portadoras das “doutrinas mais avançadas”, convertendo interesses inomináveis em falsas supremacias tecnocráticas. Assim, ambas elites, médicas e jurídicas, tradicionalmente alimentam hordas de repetidores e diluidores cujas carreiras consistem na exaustiva glorificação de passados de “resistência”, alguns, todavia, altamente limitados ou discutíveis, para se dizer pouco. Dominadas por gerontocracias tentaculares, o embotamento programado das inteligências capazes torna-se um obstáculo aos planos de concretização constitucional que haveriam de sair das meras palavras de ordem para a dignidade dos leitos efetivamente disponíveis.

Também por isso o presente livro de Laércio Martins é seminal: ele principia a desvendar, desde os horizontes institucional e histórico, a sucessão dos “discursos” produzidos alhures e cá, no espaço doméstico, ainda recepcionados como novidades alvissareiras, isso em plena era da genética, das neurociências ou de uma psicologia social de alcance devastador, empiricamente embasada e já capaz de abranger as relações entre os sistemas psíquicos e as dinâmicas comportamentais de imensos contingentes, como demonstra a psicometria dos algoritmos e seus dramáticos impactos na disfuncionalidade da razão pública.

Vinculadas a poderosas redes de (auto)reprodução, nossas elites científicas e jurídicas logo conseguem se aparelhar de discípulos e justificativas, alçando-se à condição de atravessadoras comissionadas de variadas crises. Portanto, sabem elas não apenas se destacar, como também tornar-se “indispensáveis”, apesar de o mundo tantas vezes literalmente ruir ao redor de seus silêncios obsequiosos. Logo, qualquer análise consequente do nosso campo científico deve reconduzir estas linhagens intelectuais à inércia de seus comprometimentos pregressos  (por exemplo: como durante a redemocratização), perfurando a espessa camada de proclamações bem-intencionadas na qual cedo se embalam. Torna-se imperiosa, então, uma fina sociologia da ciência e da academia brasileiras, a fim de que se revele, afinal, de “quem” (e de quanto) estamos tratando.

Ora, onde estavam nossos altos especialistas quando este país, que tem um dos maiores sistemas educacionais do planeta, recrutou milhares médicos cubanos de precária formação, em acordos internacionais marcados por obscuras contrapartidas? Onde estavam suas inserções em grandes debates e planejamentos quando as cracolândias se tornaram verdadeiras usinas de exclusão social? Estariam na “marcha da maconha”, em defesa do uso recreativo das drogas? Seria esta uma prioridade ou apenas uma demanda corporativa das classes médias? Onde estariam quando as vagas psiquiátricas do SUS foram suprimidas? Estariam já a favor das caríssimas internações em clínicas privadas “não institucionais”, reservadas ao sofrimento dos ricos jovens acometidos de depressão e dependência química? O que disseram quando o sistema público de saúde foi vergonhosamente preterido por uma operação de assalto aos cofres públicos a fim de se realizarem eventos desportivos que levariam à banca rota a economia do Rio de Janeiro e de outros estados com obras de infraestrutura superfaturadas à custa de milhares de vidas e destinos? Como se posicionaram face aos escandalosos desvios de verbas e materiais geradores de humilhantes sucateamentos de maquinários de exames tantas vezes sequer desembalados? Será que nossos intelectuais pouco ou mal sabiam sobre o calvário dos hospitais brasileiros do SUS? Quantos carimbos e coloridas vias invencíveis interpuseram entre a vida e o cuidado, entre o CPF esquecido e o descaso com maquiagem informatizada? Quantas entrevistas concederam ou quantos comícios realizaram contra projetos de governos envolvidos na ruína da educação gratuita e na promoção ao financiamento pelo erário de corporações privadas de ensino (bem incluído aí o da medicina) que hoje remuneram capital estrangeiro em sociedades abertas em bolsas de valores? Quantos atos teriam realizado em defesa do Museu Nacional antes da trágica calcinação de nossas memórias antropológicas e naturais? Dois? Duzentos? Nenhum? Em rápido bosquejo, dentre inúmeras outras, essas são apenas algumas indagações que demandam respostas bastante objetivas, caso se pretenda qualquer apuração das próprias responsabilidades cabidas à nossa intelligentsia.

Não é mais suficiente discordar em silêncio. Tampouco esperar o patético oportunismo de certa “classe artística” que rapidamente galvaniza causas e vítimas em benefício do próprio prestígio. É imprescindível evidenciar como a larga reprodução de mentalidades inexpressivas ocasionou esta torpe devastação espiritual que agora se traduz na ruína dogmática que testemunhamos erigir coisas tão teratológicas como um stalinismo identitário. É irrenunciável buscar-se compreender como uma universidade tão imensa fez grassar, e em todos os espectros ideológicos, uma paradoxal depauperação petulante, ainda por cima com pretensões de ser aplaudida como “resistência” coroada por “sofisticações epistemológicas”. Falo aqui de uma genuína empulhação sistêmica que se procura imunizar contra dúvidas metódicas, esforços analíticos e singelos debates críticos. A mim, particularmente, os que hoje se arvoram como portadores de miraculosas soluções sobre o bem-estar massivo sem qualquer contraponto econômico  julgável sempre me provocaram profundas desconfianças. Acredito que o vácuo prático ou a generalidade de suas concepções devem ser redescritos pela minúcia das redes de poder que integram e com as quais, inúmeras vezes subterraneamente, se comprometem de modo a sacrificar o bem comum. Mas isso seria já ir muito além da crença em suas próprias narrativas, sempre bem aprovisionadas pela cara mitificação corporativa: é imprescindível, em franca atitude metodológica, não acreditar cegamente no que declara e mostra o próprio entrevistado.

Novamente retorno à pesquisa de Laércio Martins: em parte graças a um material de pesquisa ainda não divulgado, ela aclara a sombra aparentemente consensual de nossa saúde pública com os lampejos das guerras de bastidores que se devem traduzir em explicitações de vínculos entre as altas razões iluministas e as vantajosas verbas estatais de remuneração da medicina privada, isso para se fornecer apenas um exemplo. No campo da saúde mental, os limiares da normalidade, da sanidade e do sofrimento psíquico movimentam influentes propósitos financeiros dissimulados sob as mais sutis estratégias pseudoaltruístas. Ao abordar esse delicado tema, a investigação de Laércio Martins permite recompor certos nexos entre nosso espaço científico e a dramática cena de um terreno institucional reticular e burocraticamente agigantado. Reitero, então, o que disse há pouco: jamais pensemos que se trate aí de qualquer singularidade excêntrica própria às ciências naturais. Muito antes pelo contrário: é bem aqui que a longa tradição do bacharelismo jurídico brasileiro foi antecedida pelos doutos da medicina. E ambos sempre marcharam juntos nesse polígono que pode ser demarcado por quatro pontos:

  1. a inépcia e/ou indiferença administrativa;
  2. a demagogia epistemológica tardo-periférica;
  3. a performance corporativa auto-reprodutora; e
  4. a substituição do amplo debate pelo ponto de vista “especializado”.

Para os intelectuais públicos, já passa a hora de uma retomada autocrítica severa. E esta não será, por certo, tarefa fácil ou absolutamente indolor: ela moverá vaidades e deverá recolocar a prática como critério efetivo da verdade. Ela precisará então substituir a indolência e a impostura de uma fácil responsabilização pueril dos adversários de ocasião rapidamente convertidos em inimigos em uma caçada por butins. Na universidade, será preciso reconquistar preciosas inteligências que se imobilizaram (a) no produtivismo acadêmico; (b) no ativismo eunuco; (c) no varejo escandalizado da lacrosfera digital; e (d) no massivo torpor das indiferenças e apatias.

Na busca de uma ética de virtudes, também é tempo de se recuperar a obra e a trajetória do grande Sérgio Arouca, cientista e militante idealizador de nosso Sistema Único de Saúde que empresta seu nome à Escola Nacional de Saúde Pública. Foi também com Sergio Arouca aprendi, certamente pouco e ainda muito novo, a encarar algumas das questões acima como cruciais. Corria o distante ano de 1989 e eu procurava compreender o que era uma Constituição e uma Assembleia Constituinte no contexto de um pensamento orientado pela radicalidade democrática. Mais de 30 anos depois, aquela experiência tornou-se-me crucial e, vista em retrospecto, preciosíssima justamente para apresentar este livro de Laércio Martins, que tanto nos ajuda a retomar essa via tracejada que outros já começaram com bravura a trilhar. Que a humildade dos passos não nos tire a ambição de um fim juntos ao cabo de um caminho justo: construir um sistema universal de saúde pública em funcionamento pleno para mais de 200 milhões de pessoas.

Obrigado.

Porto Alegre, 26 de maio de 2020

Marcus Fabiano Gonçalves
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da UFF

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Barracuda

BARRACUDA

carpintaria
de cavilhas
em bobina
náutica:
cede a hélice
à cavitação
superavitária

a vapor e sal
arroja a carga
por vesículas
aracnídeas:
cruza & singra
retesos pulsos
contra o peito
duro (chiuso)

deixa o esôfago
(túnel de fumo)
para encalço
do paquiderme
tartamudo

e estraçalha
a tal couraça
dita imune:
homens ao mar
nenhum abutre.

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ESPÍRITOS DE GUGU

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Ary Barroso e Augusto Temístocles Costa (Tião Macalé) no Show do Gongo

O PENTE E O BACALHAU

Egydio Guerra, Filólogo

A trágica morte de Gugu Liberato revelou toda a pujança da colonização brasileira dos Estados Unidos pelos arrabaldes de Miami. Mas não aquela colonização à moda antiga, disposta a aniquilar apaches e impor identidades. Gugu era uma espécie de rebote da mais pura cafonice devolvida às suas origens. Corriam os anos 1980, e nos embalos do Viva a Noite o Brasil se forjava nos tubos das TV’s a cores uma nova alma sertaneja entre o kitsch e o tropical. Era o fim da ingenuidade do caipira, o lifting em Mazzaropi, a diversão sublimada em bizarrice erótica, inclusive com direito a lampejos pós-modernos. Em milhões de lares de uma só tela, uma betoneira do brega revirava-se por horas a fio sem que crianças ou adolescentes esboçassem qualquer reação à total hipnose de pais, tias e avós. Eram (ou seja: fomos) totalmente medusados.

Varrendo a poeira vermelha com as franjas do velho Western, ou pondo-se sob as abas do chapéu de cowboy, rodeios de bugres e caboclos ficaram muito mais texanos com Gugu Liberato. No SBT, Jean-Claude Van Damme de pau duro diante do rebolado da Gretchen antecipava em décadas o primarismo estético de Bacurau: as emulações de um sub-Bruce Lee em pleno cabaré fingido com chacretes da concorrência. Gugu teria sido páreo ao apelo melodramático do barroco mexicano das novelas ou à colorida plebe rude dos grotões da Índia de Bollywood. Mas por mais que se o prateie, ninguém jamais tomou a ousada iniciativa empreendedora de dublá-lo para chineses, coreanos ou mesmo para nossos irmãos latino-americanos. O brasileiro que nunca confiou direito na radicalidade do próprio cinema, não teria razões para fazer diferente com seu entretenimento. Talvez o seu sucesso impedisse a corrida amarela pelo 5G e até nossas tristes pulsões bolivarianas, pois quem subestima Gugu em regra esquece do vanguardismo da sua entrevista fake com os membros do PCC e apenas recorda sua mórbida expedição à pirâmide onde jaz a múmia de Dercy Gonçalves.

No fundo, a morte de Gugu Liberato confirma a eternidade de Sílvio Santos como único ente à altura de Chacrinha nos terreiros em competição. Pouco importa se Gugu trabalhava para Edir Macedo ou se fora sondado em priscas eras pelo próprio Roberto Marinho. Gugu morto é o momento exato em que o pente do camelô do Show de Calouros intercepta o bacalhau lançando ao auditório do Cassino do Chacrinha. Por isso a tão lenta devoração antropofágica do seu corpo midiático por abutres do jornalismo e feras da “classe artística” levou mais de uma semana, em novembro de 2019. Uma única certeza ecumênica nos resta: continuamos em plena era do rádio. E apesar da Internet, o programa de Ary Barroso segue sendo um estrondoso sucesso.

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Publicado na Revista Inteligência n. 87

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NERUDA E O GATO

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foto de @laia

 

ODE AO GATO

Os animais eram
imperfeitos,
largos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, voo.
O gato,
só o gato
surgiu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
caminha sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser apenas gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do presságio à ratazana viva
da noite até seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma só coisa
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de uma nau.
Seus olhos amarelos
deixaram só uma
fenda
para jogar as moedas da noite.

Ó pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no chão,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Ó fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
sumido veludo,
seguramente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
o mundo todo te sabe e pertences
ao habitante menos misterioso,
talvez todos o creiam,
todos se acreditam donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com seus extravios,
o vezes e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
seus olhos têm números de ouro.

 

Pablo Neruda, 1959

[tradução de Marcus Fabiano Gonçalves]

* * *

ODA AL GATO

Los animales fueron
imperfectos,
largos de cola, tristes
de cabeza.
Poco a poco se fueron
componiendo,
haciéndose paisaje,
adquiriendo lunares, gracia, vuelo.
El gato,
sólo el gato
apareció completo
y orgulloso:
nació completamente terminado,
camina solo y sabe lo que quiere.

El hombre quiere ser pescado y pájaro,
la serpiente quisiera tener alas,
el perro es un león desorientado,
el ingeniero quiere ser poeta,
la mosca estudia para golondrina,
el poeta trata de imitar la mosca,
pero el gato
quiere ser sólo gato
y todo gato es gato
desde bigote a cola,
desde presentimiento a rata viva,
desde la noche hasta sus ojos de oro.

No hay unidad
como él,
no tienen
la luna ni la flor
tal contextura:
es una sola cosa
como el sol o el topacio,
y la elástica línea en su contorno
firme y sutil es como
la línea de la proa de una nave.
Sus ojos amarillos
dejaron una sola
ranura
para echar las monedas de la noche.

Oh pequeño
emperador sin orbe,
conquistador sin patria,
mínimo tigre de salón, nupcial
sultán del cielo
de las tejas eróticas,
el viento del amor
en la intemperie
reclamas
cuando pasas
y posas
cuatro pies delicados
en el suelo,
oliendo,
desconfiando
de todo lo terrestre,
porque todo
es inmundo
para el inmaculado pie del gato.

Oh fiera independiente
de la casa, arrogante
vestigio de la noche,
perezoso, gimnástico
y ajeno,
profundísimo gato,
policía secreta
de las habitaciones,
insignia
de un
desaparecido terciopelo,
seguramente no hay
enigma
en tu manera,
tal vez no eres misterio,
todo el mundo te sabe y perteneces
al habitante menos misterioso,
tal vez todos lo creen,
todos se creen dueños,
propietarios, tíos
de gatos, compañeros,
colegas,
discípulos o amigos
de su gato.

Yo no.
Yo no suscribo.
Yo no conozco al gato.
Todo lo sé, la vida y su archipiélago,
el mar y la ciudad incalculable,
la botánica,
el gineceo con sus extravíos,
el por y el menos de la matemática,
los embudos volcánicos del mundo,
la cáscara irreal del cocodrilo,
la bondad ignorada del bombero,
el atavismo azul del sacerdote,
pero no puedo descifrar un gato.
Mi razón resbaló en su indiferencia,
sus ojos tienen números de oro.

 

 

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150 ANOS DE “ESPUMAS FLUCTUANTES”

Banhistas-em-Yamba1870-2020: sesquicentenário de Espumas Fluctuantes, de Castro Alves

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SALSO ARGENTO

ourelas
da preamar:
bordas
brocadas
onde
onda alguma
em franjado
se acaba
quando
uma saliva
bem alva
chuleia
as praias
com sua
grinalda

o marouço
merma
em remanso
por brumas
de tule
ou espuma:
a maresia
torna à resina
(salsugem)

pelas areias
surfactadas
a saponácea
bolha de algas
ferve o leite
sob sua nata:
Castro Alves
nossa imagem.

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ADÉLIA PRADO, POETISA

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A FORMALÍSTICA

O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas já que estuma as musas.

O dia arde. Seu prepúcio coça.
Daqui a pouco começam a fosforescer coisas no mato.
A serva de Deus sai de sua cela à noite
e caminha na estrada,
passeia porque Deus quis passear
e ela caminha.
O jovem poeta,
fedendo a suicídio e glória,
rouba de todos nós e nem assina:
‘Deus é impecável.’
As rãs pulam sobressaltadas
e o pelejador não entende,
quer escrever as coisas com as palavras.

 

 

[Adélia Prado, A faca no peito, 2007]

 

 

 

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MINAS SEMPRE-VIVA

Parque Nacional Sempre Vivas - Bocaiúva MG

SERRA DO ESPINHAÇO

um cinturão de sempre-vivas constela-se pela turfa. brotam sob o solo delas certas águas que enferrujam: as vasilhas carcomidas, os bules de flandres, o zinco das bacias. então beber ou banhar-se nos ruivos caldos dessas tinas, com o ferro das sangas filtrando o barro nas moringas e um antigo balde (obra rara de tanoaria) descendo onde a fonte fresca mina. range o sisal da corda que de novo drena a veia aquífera. as sedes cessam ânsias e cobiças quando o crepúsculo dos cafés apaga-se ao sono dos ouropéis encapelados. no fundo do poço um espelho desperta em seu regaço. no seio da terra alumia-se um leite galáctico à vista do tropeiro acantonado entre muares. enfim a grande noite veste a tarde: dorme o menino na manjedoura da paisagem. por ora, o caminho que (a)guarde aquilo que só o tempo reserva e sabe.

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AUREA MEDIOCRITAS

BOIS

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O HERÓI SEM RISCO

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\Nelson Rodrigues

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Em todas as idades e em todos os idiomas, o herói era aquele que arriscava, na melhor das hipóteses, a própria pele. Não havia heroísmo sem perigo. Foi assim em Dumas pai, foi assim em Walter Scott. D’Artagnan teve de morrer umas 25 vezes. E a bem-amada do herói era, ao mesmo tempo, a sua viúva. Se um Ivanhoé custava a morrer, familiares e vizinhos já punham em dúvida o seu heroísmo.

Fiz a pequena introdução acima para chegar às greves de França. Eis o que eu queria dizer: — lá se inaugurou, com os estudantes e com os operários, um tipo novo de herói e um tipo inédito de epopéia. Refiro-me ao herói sem risco e à epopéia sem ônus. Pela primeira vez, em qualquer época e em qualquer idioma, chega-se ao heróico, chega-se ao épico, chega-se ao sublime sem um arranhão, sem uma fratura e, mais, sob forte proteção policial.

Um amigo bate o telefone para mim: — “Os garçons ocuparam os hotéis e seqüestraram os patrões”. Compreendo o pânico ou, por outra, não compreendo o pânico. Meu amigo não quer enxergar o lado humorístico do episódio. Não deixa de ter sua graça a inversão hierárquica e de papéis: — os proprietários servindo os garçons e embolsando as propinas. Por outro lado, as esposas, amantes e filhas dos patrões vão para a copa lavar pratos e para a cozinha fazer o bife, a carne assada, o jiló.

Todavia, o que me espanta é, repito, o nenhum risco. Não estou fazendo um exagero caricatural. Fazer greve na França é muito menos arriscado do que atravessar uma rua na Guanabara. Quando passamos de uma calçada para outra calçada, a hipótese de uma trombada é sempre cogitável. Ao passo que, na França, os gerentes são raptados e não devolvidos. E não acontece nada, nem ao raptor, nem à vítima. Ou por outras palavras: — é uma Revolução Francesa sem vítimas. Porque, no fundo, também as vítimas estão de acordo. Todo mundo concorda. E o que é mais degradante: — até a polícia concorda. Dirá alguém que resta o exército. Mas, quem limparia as ruas, se os garis também são grevistas? Acontece, então, esta coisa patética: — incumbe-se o soldado francês de virar latas, como os cães sem dono e os gatos vadios. Como a polícia é solidária, e como o exército faz limpeza pública — ninguém ameaça ninguém. As Forças Armadas pararam.

Mas o herói sem risco acaba não convencendo ninguém. A Guerra de Secessão, nos Estados Unidos, foi o que se sabe. Lincoln dissera: — “Não quero governar uma nação que é metade livre e metade escrava”. E, então, a metade livre brigou para continuar livre e a outra, para continuar escrava. Foi uma morte recíproca e total. No fim de tudo, suspirava-se: — “Quem não morreu na guerra civil?”. Estavam todos mortos, inclusive os vivos. Quando foram chamar um sobrevivente para o almoço, bocejou: — “Morri”.

Bem se vê que o grevista francês não é um defunto vocacional. Também na Guerra Civil Espanhola todo mundo morreu. Mais uma vez constatou-se que a História não avança um passo, e não recua um passo, sem sangue e, repito, muito sangue. Na Espanha, seria justo uma morte unânime, porque um lado era canalha e o outro lado, também. Mas na “revolução cultural” da França não há canalhas. Nem isso. Em 17, na Rússia, houve todo um elenco, toda uma antologia de canalhas. Um deles, e perfeito, irretocável, foi o nosso tão conhecido Joseph Stalin.

Eis o espanto geral: — e por que ninguém morre na França? Porque lá não existe uma causa nítida, uma causa precisa. E só se morre, ou só se mata por uma causa. É uma causa, boa, má ou péssima, que faz os assassinos, as vítimas e, até, os canalhas. Até prova em contrário, ninguém sabe, na França, por que e para que se viram os carros, se queima o lixo e se seqüestram os gerentes. Outro amigo me diz, no telefone: — “Deve haver um explicação. Tudo tem explicação”.

Aquilo ficou na minha cabeça: — “Tudo tem uma explicação”. De noite, exatamente às três da madrugada, acordo. Era a úlcera. Não estava doendo e eu sentia, justamente, a falta da dor. Levantei-me, vim para a  janela. Pensava na França. Tentei explicar a “revolução cultural”. Eis o que me ocorreu: — a França tem todo um potencial de heroísmo inédito, frustrado. Não fez a guerra, e repito: — os outros lutaram por ela. Os  alemães perfuraram Sedan e deslizaram em solo francês. E todo o povo, com atraso de vários anos, precisa sentir-se herói. Cada carro virado é um tanque alemão. Os franceses estão fazendo a guerra. Essa ferocidade tardia, espetacular, é uma vingança contra a capitulação.

Mas o que eu queria dizer é que o herói sem risco surge por toda parte. Li, outro dia, um artigo admirável do dr. Alceu. Era sobre Régis Debray. E o dr. Alceu considerava a prisão do francês uma ignomínia. Meu Deus, que idéia faz da guerrilha o nosso Tristão de Athayde? Pensa talvez que é um piquenique? Uma farra? E que os guerrilheiros são frívolos, álacres peraltas? Qualquer um sabe que não há, obviamente, uma guerrilha sem riscos precisos. Assim como o guerrilheiro mata é também natural que o matem. E, se leva um tiro na cara, como um passarinho, vamos convir que tal contingência nada tem de extraordinário. Surpreendente é que um guerrilheiro sobreviva indefinidamente. Queria o dr. Alceu que o exército boliviano carregasse Guevara na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado?

Volto à França. Não admiramos o grande povo na derrota. Podemos admirá-lo na greve? Hoje, até os artistas param. Mas, por toda a ocupação nazista, Barrault não morreu uma única e escassa vez. E os pianistas, os violinistas, os violoncelistas iam fazer recitais para os eruditos generais inimigos. Ontem ou anteontem incendiaram a Bolsa. Mas é também um terrorismo sem perigo. O incêndio foi aplaudido e quase bisado. Na ocupação, nenhum garçom pôs formicida na sopa nazista. Sim, a França faz o anti-herói, a antiepopéia, e nos dá a imagem da anti-França.

[Nelson Rodrigues, maio de 1968]

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